Os Pobres - Cap. 19: XVIII - O Gabiru treslê Pág. 114 / 158

XVIII - O Gabiru treslê

Noite de luar. A Árvore mergulha os braços esguios num oceano de luar translúcido, biliões de átomos luminosos errando. Primavera... Houve uma coisa que eu sinto, mas que não sei descrever. Esta primavera caída lá para o fundo, que queria ser primavera, e que revolvia na escuridão totalmente cega, e aquela Árvore de saguão que queria ser árvore e que se lembrava numa dor emudecida do espaço e da luz... – E não morria! e teimou.

E subiu, toda dor e desespero. Teimou e subiu. Teimou branca e imensa e com uma vida estranha... Por pouco ouvi-la-íeis falar... Escutai-a na noite calada e cheia de tanto luar que faz aflição. Por entre os raminhos tremuleiam fios de luar esquecidos. No chão a sombra da parede faz mancha e os fios de luar dão-lhe vida.

Diríeis que ali anda fôlego vivo. Fora da sombra é tanto o luar que só se vê uma brancura. Por pouco ouvi-la-íeis gritar...

O Gabiru cisma. Os olhos abertos, todo ele dolorido, deita-se ainda a cismar. Vivera sempre tão transido e pobre, tão sozinho – que lhe não fugisse o sonho – e nada lhe ficara entre as mãos. Só escárnio! só escárnio!...

Bate o luar em cheio naquela figura exótica e transforma-a, Não é ridículo. Corre-lhe o luar nos olhos, nas mãos estendidas, e cheio de luar sorri extasiado...

Hein, que queres tu? Nasce uma criatura para a desgraça. Em pequena anda rota, quase nuazinha, e o pão da vida dão-lho os ladrões e soldados. Maltratam-na, irmã da terra, rasa como a terra. Nada sabe do sonho – e que culpa tem ela de não sonhar? Violam-na, tornam-na igual das pedras, seca como as pedras, mesquinha, e arrancam-lhe todas as aspirações, cospem-lhe em todos os sonhos. Só sofre. Vêm uns, vêm outros para a fazerem gritar, e ela um dia põe-se a rir e ri-se até da desgraça.





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