Os Pobres - Cap. 25: XXIV - O ladrão e a filha Pág. 140 / 158

Tomaram conta dela as mulheres. Dormia com elas ou com o ladrão. Uma manhã disseram:

– A tua amante lá vai. Enterrou-se ontem.

E o Morto ficou horas sozinho a cismar. Acordaram- no risos fora. Levantou a cortina e foi direito ao velho cavador que tinha a pequena nos joelhos. Calaram-se todos em roda, e ele tirou-lha de repelão dos braços, encarando com o outro que se riu com a grande boca de fera desdentada. O Morto saiu com ela e só voltou à tarde, tornando a entregá-la à Gorda.

– Guarda-ma até à noite.

À noite chamou a pequena e teve-a muito tempo apertada contra si. Talvez nesse momento compreendesse o horror da Asilada pela filha e a sua ternura antes de a levarem de vez para o hospital – talvez visse o Velho com a criança nos braços e aquela boca escancarada lhe parecesse monstruosa.

– Vem comigo.

– Onde vamos, pai? Passear?

– Passear.

A pequena riu-se.

– Agora?

– Agora.

E pegando-lhe pela mãozinha levou-a até ao rio, exactamente no sítio onde encontrara pela primeira vez a Asilada. Meteu-se dentro dum barco, desamarrou-o e pôs-se a remar.

– Onde vamos, pai?

– Tu verás. Dorme.

O mesmo horror inconsciente que lhe tinha a mãe, sentia-o agora o ladrão. Não raciocinava. Nem o ódio era pela viela que esperava a criança, nem por a ver nas mãos do cavador brutal ou do soldado vesgo, que a olhava calado com ferocidade. Doía-lhe qualquer coisa, que o obrigara a tomar uma resolução para poder respirar.

Aquilo não podia existir ao seu lado – tinha de desaparecer. Isto sentia-o profundamente até ao âmago, como a mãe o sentira sem o saber explicar. Na alma do ladrão, ao pegar essa noite na criança, havia ao mesmo tempo ferocidade e horror. Era necessário matá-la, absolutamente necessário.





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