– Agora.
Mas a criança olhou para ele e riu-se – e ele teve-lhe medo.
– Dorme!
A pequena pôs-se a balbuciar – ó pai! ó pai!... –a dizer as palavras desconexas e extraordinárias que dizem as crianças, e as obscenidades que ouvia ao Velho na viela quando lhe pegava ao colo. E o ladrão estremeceu abalado até às profundidades da vida.
– O pai! ó pai! – gritou ela de repente – o que é aquilo lá em cima?
E a pequena, que nunca tinha visto estrelas na viela trágica, apontou deslumbrada o céu.
– Estrelas.
– Ah estrelas! estrelas!... – E o monólogo infantil seguiu com estas palavras e encanto – com as palavras tão repetidas que têm sempre novidade e frescura nos bicos cor-de-rosa, como se a vida pela primeira vez acordasse sempre que uma criança fala, e palavras terríveis, que pertencem à vida trágica e que ela inconscientemente misturava às outras.
Por fim adormeceu na caverna do barco olhando para o céu. Mas a dormir metia-lhe tanto medo como acordada... Estendeu as mãos devagarinho e atou-lhe à cinta uma corda com a poita. A pequena mexeu, acordou, sorriu, abriu a boca para dizer pai, e caiu logo no sono inocente. E o ladrão ficou muito tempo quieto a olhar para ela.
A criança não podia continuar a viver. Diante dos olhos tinha sempre a boca desdentada do Velho e as figuras das mulheres dizendo obscenidades. Sabia que destino a esperava. A criança era o mal. Ele só teria sossego na terra quando a atirasse ao rio e a visse descer lá para o fundo, para muito fundo, longe da vida de dor e de tragédia.
Pela primeira vez sentia que cometera um crime contra uma coisa imensa e extraordinária, contra uma coisa imensa e invisível – sentia com horror que envenenara a vida. Era necessário matá-la... E ao mesmo tempo desabava sobre ele outro espanto sem existência real.