Os Pobres - Cap. 14: XIII - Essa rapariguinha Pág. 82 / 158

Arqueja o lume no escuro todo povoado de vozes, que vão pregar, mas que logo se calam sufocadas. A ventania passa lá fora e na escada soam os passos do gato-pingado; as mulheres gargalham e eu fico sozinho, a cismar, neste velho casarão, com os olhos presos no lume que esmorece...

Por fim tudo se confunde na minha alma, os vivos e os mortos, o sonho e a realidade. Há dias em que não distingo as feições dos que habitam comigo no prédio, das feições dos que estão enterrados na cova. Tanto vale o fantasma que me persegue como este homem que pára à minha porta gemendo.

E ei-lo outra vez no patamar a tossir, com o peito escalavrado e roto!

Na verdade não conheço ninguém tão nulo, banal como a própria banalidade. A sorrir, a amar, e até com o coração despedaçado, esse homem fazia sempre rir. Os próprios inimigos tinham por ele piedade ou desprezo.

Sim, piedade ou desprezo, porque era incapaz de ódios.

Nunca pudera aprender a vingar-se e sabiam-no. A mim mesmo me fez algum bem, que depois lhe retribui em esmolas, ao encontrá-lo estatelado na rua: Nunca lhe achei interesse: a sua vida é a vida de todas as criaturas que se afundam por falta de tino prático para a luta:

enlamear, mentir, triunfar enfim. A vida (oh todas as sólidas filosofias o ensinam) é de quem possui a força e aptidão... Mas hoje estou num dia enervado e sinto-me sozinho neste velho casarão. Parece que a noite tem vozes e que os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos!...) encontram enfim palavras e se põem a falar dentro em mim.

É talvez para fugir a esta obsessão que me deito a cismar na vida deste ser banal como a própria banalidade.

Nem sei como conte, com que palavras faça a narração duma existência que é como um trapo que se deita fora todo molhado de lágrimas.





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