A desgraça que eu tenho encontrado não é a desgraça, nem isto é a felicidade: quero tragar a vida amarga, misteriosa, profunda, toda a vida; quero o meu quinhão tal como o têm os misérrimos bichos, os montes ignorados e os pobres...
Ou vou morrer sem ter vivido.
Só em pequeno é que eu senti correr em mim a vida. Guardo ainda o cheiro à essência dos pinheiros mansos, que eu vi há muitos anos, o cheiro a bravio que o mato orvalhado tinha de manhã, e que me fazia cismar na vida feliz dos lobos e dos bichos, que respiram o ar livre e são; que dormem sem cuidados nas tocas ou nas sombras fofas; que matam sem remorsos.
O nosso quintal! No alto há um muro branco, uma cancela, uma mouta de pinheiros sempre verdes e em diálogo com o mar.
A princípio lembra um labirinto, uma labareda verde. As couves são do tamanho de árvores e a água sussurra, mina por toda a parte, em carreirinhos, embebe à farta a terra negra e gorda. Bordam os canteiros renques de alfazema, cravos, roseiras de flor singela, e ao fundo há uma figueira grande, de folhas espalmadas e carnudas, que dá uma sombra subterrânea. Todo o quintal, esfurancado pela água, ressoa como um cortiço. Cintilações, rumores por toda a parte, por toda a parte a solidão.
Ali as árvores eram minhas amigas, as coisas conheciam-me e eu vivia duma vida convencida, forte, bravia...
Vieram depois as palavras, os mestres, os amigos, e eu nunca mais achei sabor à vida, até que acordei agora com este grito: Nunca vivi!...
Ponho-me a pensar: quantas vezes a felicidade e a desgraça não são verdadeiras, nem sentidas? Máscaras, só máscaras que afivelamos em determinadas ocasiões, porque os autores, os amigos, todo o trama complicado em que nos enredam, nos ensina: – Em tal situação tu serás feliz.