Eurico, o Presbítero - Cap. 14: Capítulo 14 Pág. 115 / 186

A chama enredou-se na tela: um rolo de fumo espesso trepou em espirais, enegrecendo-lhe os recamos e lavores brilhantes. Em breve, as labaredas abraçadas com os feixes de lanças, com os panos custosos, que ondeavam torcendo-se, treparam até o cimo e, curvando-se espalmadas sob o tecto, romperam em línguas ardentes aprumadas para o céu. O incêndio, espalhando ao longe a sua sinistra claridade, erguia-se como um tocheiro disforme aceso no meio do arraial e despertava assim do sono profundo os soldados de Al-Sudan lançados em volta do pavilhão do amir.

Mas já a este tempo o cavaleiro se afastara do lugar daquela cena medonha. As palavras Liberdade e Pelágio! proferidas por ele tinham calado como um bálsamo de vida no coração de Hermengarda. O desconhecido, tomando-a nos braços, atravessou ligeiro para o lado do arraial onde estanciavam os godos. Outro cavaleiro lhe tinha de rédea dois ginetes. Hermengarda, a quem o perigo e a esperança haviam restituído toda a natural energia, não hesitou em acompanhar o seu audaz e misterioso salvador. Seguindo os caminhos tortuosos e incertos que as tendas do imenso arraial formavam e guiando-se pela Lua, que principiava a sair detrás dos outeiros, os três fugitivos encaminharam-se para o lado do campo além do qual as montanhas, lá ao longe, reflectiam já o luar das cumeadas cobertas de neve.

Entretanto Al-Fehri correra a despertar os negros da guarda do amir, e o cavaleiro ainda ouviu os gritos destes ao contemplarem o incêndio mais prestes em acordá-los que o eunuco. À entrada da tenda, o vigia que devera despertá-los ao primeiro sinal de Abdulaziz havia adormecido de sono mais profundo que o deles. Um punhal enterrado na garganta até o punho lhe selara para sempre os lábios. Os gestos de desesperação de Al-Fehri fizeram conhecer aos soldados o perigo do amir. Por entre as chamas, ferido e semimorto, a custo puderam salvá-lo. Pouco a pouco, o tumulto alongou-se pelo arraial: os xeiques árabes e os capitães de Juliano corriam para o lugar onde brilhava o incêndio, e, dentro em pouco, as vozes desentoadas, o tocar das trombetas, o rufar dos tambores, o tropear dos cavalos naquela vasta planície fariam crer a quem olhasse para ali dos montes vizinhos que no arraial se pelejava uma batalha nocturna.





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