Avitória do Chrysus assegurara aos árabes a conquista da Espanha inteira, porque o desalento entrara em todos os corações, e o terror quebrara todos os brios. O duque de Cantábria, Pelágio, fora o único em cuja alma não morrera inteiramente a esperança. Errante pelos cerros quase inacessíveis que se elevam no extremo oriental da Galécia e que, passando ao norte da Cartaginense, vão entroncar-se no vulto gigante dos Pirenéus, o mancebo não dobrara a cerviz ao fado cruel que pesava sobre seus irmãos. Poucos o haviam seguido naquela vida quase selvagem: mas esses poucos eram homens a quem a aura da liberdade parecia a única atmosfera em que seus pulmões robustos poderiam resfolegar; homens a cujos olhos as afrontas da cruz derribada do cimo das catedrais seria espectáculo incrível e insuportável. Uma caverna servia de paço ao jovem rei das montanhas e de templo ao Crucificado. Os domínios do Pelágio eram as serranias e os vales profundos onde, porventura, até então nunca soara a voz humana. O urso ferocíssimo, o javali indomável, a leve corça abasteciam a grosseira mesa desses godos a quem a desgraça e a vida dura das solidões fizera mais feros, mais indomáveis e mais ligeiros do que eles. Às vezes, Pelágio e os seus soldados desciam das montanhas para largas correrias, semelhantes à tempestade nocturna, e, como a tempestade, passavam pelas tendas dos árabes ou pelas aldeias, despovoadas de cristãos, onde os infiéis começavam a fazer assento. Alta noite ouvia-se aí um gemer de moribundos, via-se o brilhar do incêndio. Era o bulcão do deserto que rugia por lá. Ao amanhecer tudo estava tranquilo; porque, bem como a procela, Pelágio era repentino e destruidor, e só escrevia na terra com os caracteres sanguinolentos de ruínas e mortes a notícia da sua quase invisível passagem.
Não assim Teodemiro. Depois da batalha, os restos das tiufadias desbaratadas haviam-no proclamado sucessor de Roderico. Era de ferro e de espinhos a coroa que se lhe oferecia sobre a campa do Império Godo. Aceitou-a; porque em aceitá-la havia mais abnegação que orgulho.