1
ERA por uma destas noites vagarosas do Inverno em que o brilho do céu sem lua é vivo e trémulo; em que o gemer das selvas é profundo e longo; em que a soledade das praias e ribas fragosas do oceano é absoluta e tétrica. Era a hora em que o homem está recolhido nas suas mesquinhas moradas; em que pelos cemitérios o orvalho se pendura do topo das cruzes e, sozinho, goteja das bordas das campas; em que só ele chora os mortos. As larvas da imaginação e o gear nocturno afastam do campo santo a saudade da viúva e do órfão, a desesperação da amante, o coração despedaçado do amigo. Para se consolarem, os infelizes dormiam tranquilos nos seus leitos macios!... enquanto os vermes iam roendo esses cadáveres amarrados pelos grilhões da morte. Hipócritas dos afectos humanos, o sono enxugou-lhes as lágrimas!
E depois, as lousas eram já tão frias! Nos selos do torrão húmido o sudário do cadáver tinha apodrecido com ele.
Haverá paz no túmulo? Deus sabe o destino de cada homem. Para o que aí repousa sei eu que há na terra o esquecimento!
Os mares pareciam naquela hora recordar-se ainda do rugido harmonioso do Estio, e a vaga arqueava-se, rolava e, espreguiçando-se pela praia, reflectia a espaços nas golfadas de escuma a luz indecisa dos céus.
E o animal que ri e chora, o rei da criação, a imagem da divindade, onde é que se escondera?
Tremia de frio em aposento cerrado, e sentia confrangido a brisa fresca do norte que passava nas trevas e sibilava contente nas sarças rasteiras dos maninhos desertos.