MUITAS vezes, pela tarde, quando o Sol, transpondo a baía de Carteia, descia afogueado para a banda de Melária, dourando com os últimos esplendores os cimos da montanha piramidal do Calpe, via-se ao longo da praia vestido com a flutuante estringe o presbítero Eurico, encaminhando-se para os alcantis aprumados à beira-mar. Os pastores que o encontravam, voltando ao povoado, diziam que, ao passarem por ele e ao saudarem-no, nem sequer os escutava, e que dos seus lábios semiabertos e trémulos rompia um sussurro de palavras inarticuladas, semelhante ao ciciar da aragem pelas ramas da selva. Os que lhe espreitavam os passos, nestes largos passeios da tarde, viam-no chegar às raízes do Calpe, trepar aos precipícios, sumir-se entre os rochedos e aparecer, por fim, lá ao longe, imóvel sobre algum píncaro requeimado pelos sóis do Estio e puído pelas tempestades do Inverno. Ao lusco-fusco, as amplas pregas da estringe de Eurico, branquejando movediças à mercê do vento, eram o sinal de que ele estava lá, e, quando a Lua subia às alturas do céu, esse alvejar de roupas trémulas durava, quase sempre, até que o planeta da saudade se atufava nas águas do Estreito. Daí a poucas horas, os habitantes de Carteia que se erguiam para os seus trabalhos rurais antes do alvorecer, olhando para o presbitério, viam, através dos vidros corados da solitária morada de Eurico, a luz da lâmpada nocturna que esmorecia, desvanecendo-se na claridade matutina. Cada qual tecia então sua novela ajudado pelas crenças da superstição popular: artes criminosas, trato com o espírito mau, penitência de uma abominável vida passada, e, até, a loucura, tudo serviu sucessivamente para explicar o proceder misterioso do presbítero. O povo rude de Carteia não podia entender esta vida de excepção, porque não percebia que a inteligência do poeta precisa de viver num mundo mais amplo do que esse a que a sociedade traçou tão mesquinhos limites.
Mas Eurico era como um anjo tutelar dos amargurados. Nunca a sua mão benéfica deixou de estender-se para o lugar onde a aflição se assentava; nunca os seus olhos recusaram lágrimas que se misturassem com lágrimas de alheias desventuras. Servo ou homem livre, liberto ou patrono, para ele todos eram filhos.