1984 - Cap. 5: Capítulo V Pág. 62 / 309

Havia sempre, no estômago e na pele, uma espécie de protesto, a sensação de que se perdera, para um gatuno, algo a que se tinha direito. Era fato que não tinha recordação de nada muito diferente. Em todas as épocas que lembrava com precisão, nunca houvera suficiente para comer, nunca tivera meias ou roupa branca que não fossem esburacadas, mobília que não fosse capenga e gasta; e cômodos mal aquecidos, comboios subterrâneos atulhados, casas caindo aos pedaços, pão escuro, chá raro, café nojento, cigarros insuficientes - nada barato e abundante, exceto gin sintético. E conquanto as coisas piorassem com o envelhecimento do corpo, não era isto um sinal de ser diferente a ordem natural das coisas, quando o coração se confrangia ante o desconforto, a sujeira e a escassez, os invernos intermináveis, as meias pegajosas, os elevadores que nunca funcionavam, a água fria, o sabão áspero, os cigarros que se desfaziam, a comida de sabor mau e estranho? Por que achar tudo isso intolerável, a menos que se tivesse uma espécie de lembrança ancestral de coisas outrora diferentes?

Tornou a olhar em volta da cantina. Quase todo mundo era feio, e seria feio ainda que se vestisse direito, em vez de usar o macacão do Partido. Do outro lado do salão, sozinho numa mesa, um homem mirrado, que parecia um besouro, tomava uma xícara de café, os olhinhos atirando dardos suspicazes para um lado e outro. Como era fácil, pensou Winston, acreditar que o tipo físico considerado ideal pelo Partido - rapazes altos e musculosos, donzelas de grandes seios, louras, viçosas, queimadas de sol, alegres - existisse e mesmo predominasse. Na verdade, até onde podia julgar, a maioria, na Pista N.º 1, era de gente miúda, morena, mal favorecida.





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