Capítulo VI Winston escrevia no diário:
Faz três anos. Era uma noite escura, numa ruela sem luz, perto duma grande estação ferroviária. Ela estava parada perto duma porta, sob um lampião que mal iluminava o lugar. Tinha rosto jovem, com pintura espessa. Foi realmente a pintura que me chamou a atenção, pois era branca como uma máscara, e os lábios muito vermelhos, brilhantes. As mulheres do Partido nunca se pintam. Não havia ninguém mais na rua, nem teletela. Ela disse dois dólares e eu...
Por um minuto foi difícil continuar. Fechou os olhos e apertou com os dedos, tentando afastar a visão que insistia em voltar. Tinha uma tentação quase indomável de berrar um bando de palavras indecentes a pleno pulmão. Ou bater a cabeça na parede, dar um pontapé na mesa ou atirar o tinteiro pela janela - fazer algo violento, doloroso ou ruidoso que pudesse apagar a lembrança que o atormentava.
Nosso pior inimigo, refletiu, é o sistema nervoso. A qualquer momento a tensão que há dentro da gente pode-se traduzir num sintoma visível. Pensou num homem com quem cruzara na rua, havia algumas semanas: um sujeito de aspeto comum, membro do Partido, de trinta e cinco ou quarenta anos, alto e magro, levando uma pasta. Estavam a apenas alguns metros de distância quando o lado esquerdo do rosto do homem se contorceu subitamente num espasmo. Tornou a acontecer quando cruzaram: era apenas um tremor, um arrepio, rápido como o clique do obturador duma máquina fotográfica, mas evidentemente habitual. Lembrou-se de ter pensado na ocasião: esse pobre diabo está danado. O mais aterrorizante era o ato talvez ser inconsciente. O pior de todos os perigos era falar dormindo. Não havia meio de se proteger contra aquilo.