Capítulo III Winston sonhava com sua mãe.
Devia ter uns dez ou onze anos quando sua mãe desaparecera. Era alta, esguia, meio calada, de movimentos vagarosos e magnífico cabelo claro. Do pai lembrava-se mais vagamente. Era moreno e magro, vestia sempre roupas escuras, bem-postas (Winston lembrava-se vivamente das solas finas dos sapatos do pai), e usava óculos. Os dois deviam, evidentemente, ter sido tragados num dos grandes expurgos de 1950-60.
Naquele momento porém sua mãe estava sentada à frente dele, num lugar fundo, com a filhinha nos braços. Ele não se lembrava da irmã senão como um bebezinho fraco, sempre calado, de olhos grandes e vigilantes. Ambas o fitavam. Encontravam-se nalgum subterrâneo - no fundo de um poço, ou numa tumba muito profunda - mas era um lugar que, apesar de já ser muito mais baixo, submergia ainda e cada vez mais. Estavam no salão de um navio que naufragava, e olhavam para ele através da água que escurecia. Ainda havia ar no salão; elas podiam vê-lo e ele a elas, mas todo tempo as duas continuavam afundando, baixando nas águas verdes que dentro de alguns momentos as ocultariam para sempre. Ele se encontrava no claro, e com ar, enquanto elas eram absorvidas pela morte, e estavam no fundo por causa dele estar ali. Ele sabia disso, elas sabiam, e era visível que sabiam. Mas não havia censura nem na fisionomia nem no coração das duas, apenas a certeza de que deviam morrer para que ele continuasse vivo, e que aquilo era parte da ordem inevitável das coisas.
Não podia lembrar-se do quê sucedera, mas sabia no sonho que, dum modo ou doutro, a vida de sua mãe e de sua irmã tinham sido sacrificadas pela dele. Era um desses sonhos que, embora retenham o cenário onírico característico, são a continuação da vida intelectual do indivíduo, e no qual toma conhecimento de fatos e ideias que mesmo depois de acordar ainda parecem novos e valiosos.