1984 - Cap. 8: Capítulo VIII Pág. 89 / 309

E t'digo que nenhum número... Ora, cala a boca! - disse o terceiro homem.

Estavam falando da Loteria. A uns trinta metros de distância, Winston olhou para trás. Ainda discutiam, rosto apaixonado, febril. A Loteria, com seus enormes prémios semanais, era o acontecimento público a que os proles davam a maior atenção. Era provável que houvesse milhões de proles para quem a Loteria era o principal senão o único motivo de continuar a viver. Era o seu deleite, sua loucura, seu anódino, seu estimulante intelectual. Quando se tratava da Loteria, até gente que mal sabia ler e escrever fazia intrincados cálculos e fantásticas proezas de memória. Havia um exército de homens que ganhava a vida graças à simples venda de sistemas, previsões e amuletos. Winston nada tinha que ver com a exploração da Loteria, que era administrada pelo Ministério da Fartura, mas sabia (como sabiam todos do Partido) que em grande parte os prémios eram imaginários. Na realidade, só eram pagas pequenas quantias, sendo pessoas inexistentes os ganhadores da sorte grande. Na ausência de qualquer intercomunicação real entre uma parte e outra da Oceania, não era difícil arranjar isso.

Mas se esperança havia, estava nos proles. Era preciso agarrar-se a isso com unhas e dentes. Quando se traduzia o pensamento em palavras, parecia razoável: mas quando se consideravam os seres humanos que passavam pela calçada a ideia se transformava em ato de fé. A rua que tomara descia um declive. Teve a sensação de já ter andado pela vizinhança, e de haver por perto uma avenida principal. Dalguma parte chegou-lhe aos ouvidos uma gritaria geral. A rua fez uma curva brusca e acabou nuns degraus que conduziam a um beco em nível inferior, onde alguns barraqueiros vendiam legumes murchos.





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