Eurico, o Presbítero - Cap. 18: Capítulo 18 Pág. 164 / 186

Estendeu o braço, segurando a mão de Hermengarda, que pretendeu recuar e não pôde. Como petrificada, parecia que os pés se lhe haviam enraizado no chão da caverna. Aquela mão, que segurava a sua escaldando de febre, era gelada como a de um morto. A vida do gardingo tinha-se concentrado toda no coração, que lhe despedaçavam duas ideias, horríveis porque associadas: o amor correspondido e tornado ao mesmo tempo maldito, monstruoso, impossível por uma palavra fatal, que lá estava escrita em caracteres de fogo, e que ele via, escutava, sentia — o sacerdócio!

— Oh, Deus to pague! — disse Eurico em voz baixa e lenta — que lançaste na tão longa noite da minha alma um raio fugitivo de luz, luz santa e pura de contentamento e felicidade!... Há dez anos que não me alumia, e ela é tão bela, ainda quando passa como o relâmpago! — E, depois de estar calado alguns instantes, com o gesto de íntimo e angustiado cogitar, prosseguiu: — Não, Hermengarda, não! Os vermes ainda não receberam a parte da sua herança que eu lhes retenho. Morri; porém não para isso que, na linguagem mentirosa do mundo, se chama a vida. Durante anos dei-a a devorar à desesperação, e a desesperação não pôde consumi-la. Pendurei- a alta noite, pela espessura das trevas, nas rochas escarpadas do mar do ocidente, à beira dos precipícios, e o mar e os precipícios não quiseram tragá-la. Atirei-a à torrente impetuosa das batalhas, e o ferro embotou-se nela. O céu guardava-me para te ouvir palavras de amor e arrependimento; essas palavras de inefável doçura que nunca esperei escutar. É que na minha fronte está gravada a maldição de cima: é que ainda me faltava o derradeiro martírio... Ao menos posso acabar o teu: o pensá-lo é um refrigério. Hermengarda, eu vivo ainda! Vivi para te salvar da desonra, e todo o meu passado esqueci-o. Só uma cousa não, porque me subverteu para sempre o futuro; porque, depois de passageira alegria, me recalcou mais violentamente esperanças que ousaram um momento agitar- -se no fundo desta alma, tranquila na desesperança. Agora, se há repouso debaixo da campa, posso ir buscar lá meu repouso. Mas dize-me; oh, dize-me ainda outra vez, que amas Eurico! Repete diante do que respira aquilo que proferiste diante da sombra criada pelo teu terror. Essas palavras, e o morrer!... O teu amor e a morte; eis para mim a única ventura possível, mas que não tem igual na terra.





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