1984 - Cap. 8: Capítulo VIII Pág. 105 / 309

Não podia correr, não podia desferir uma Pancada. Além disso, ela era jovem e vigorosa e certamente se defenderia. Pensou também em correr ao Centro Comunal e ficar lá até fechar, de modo a estabelecer um álibi parcial para a noite. Mas também isso era impossível. Uma tremenda lassitude o dominava. O que queria era ir logo para casa, sentar-se e descansar.

Passava das vinte e duas quando chegou ao apartamento. As luzes seriam desligadas na chave geral às vinte e três e trinta. Foi à cozinha e engoliu uma xícara quase cheia de Gin Vitória. Foi então à mesa, no nicho da sala, sentou-se e tirou o diário da gaveta. Mas não o abriu imediatamente. Na teletela uma mulher com voz de lata berrava uma canção patriótica. Ele ficou contemplando o papel mármore da capa do caderno, tentando sem êxito banir dos sentidos aquela voz.

Era à noite que vinham buscar a gente, sempre à noite.

O melhor era matar-se antes de ser apanhado. Sem dúvida havia gente capaz disso. Com efeito, muitos dos desaparecidos eram suicidas. Mas era preciso coragem desesperada para se matar num mundo em que era impossível obter armas de fogo, ou veneno rápido e certo. Pensou, com uma espécie de assombro, na inutilidade biológica da dor e do medo, na traição do corpo humano que sempre se congela na inércia, no momento exato em que dele se exige esforço especial. Poderia ter silenciado a moça morena se conseguisse agir com rapidez, mas precisamente por causa do perigo extremo que corria perdera a capacidade de agir. Ocorreu-lhe que, em momentos de crise, nunca se luta com um inimigo externo, mas com o próprio organismo. Mesmo agora, apesar do gin, a dor surda do ventre tornava impossível ter dois pensamentos consecutivos.





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