1984 - Cap. 8: Capítulo VIII Pág. 106 / 309

E é o mesmo em todas as situações aparentemente heroicas ou trágicas. No campo de batalha, na câmara de tortura, num navio que naufraga, as causas por que lutamos são sempre secundárias, esquecidas, porque o corpo incha, e se infla até ocupar todo o universo, e mesmo quando não nos paralisa o medo, nem gritamos de dor, a vida é uma luta, minuto a minuto, contra a fome, o frio, a insônia, contra uma dor de estômago ou de dentes.

Abriu o diário. Era importante escrever alguma coisa. A mulher da teletela atacara nova canção. Sua voz parecia ferir-lhe os miolos como estilhaços irregulares de vidro. Ele procurou pensar em O'Brien, para quem, ou a quem, estava escrevendo o diário, mas ao invés se pôs a pensar no que lhe aconteceria quando a Polícia do Pensamento o levasse. Não fazia diferença, se o matassem logo. Ser morto era o que esperava. Mas antes da morte (ninguém falava de tais coisas, mas todo mundo sabia) havia a rotina da confissão: rastejar no chão e implorar misericórdia, o estalo de ossos partidos, os dedos quebrados e o cabelo com coágulos de sangue. Por que passar por tudo isso, se o fim era sempre o mesmo? Por que não encurtar de alguns dias ou algumas semanas a vida do sujeito? Ninguém jamais escapava ao descobrimento, nem ninguém deixava de confessar. Quando se sucumbia à crimideia era certo que em determinada data se estava morto. Por que então aquele terror fatal do futuro, que nada alterava?

Ele tornou a tentar, com um pouco mais de êxito, conjurar a imagem de O'Brien. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva," dissera O'Brien. Ele sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber. O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário, que nunca se podia ver mas que, pelo pensamento, se podia partilhar misticamente.





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