Abriu o diário. Era importante escrever alguma coisa. A mulher da teletela atacara nova canção. Sua voz parecia ferir-lhe os miolos como estilhaços irregulares de vidro. Ele procurou pensar em O'Brien, para quem, ou a quem, estava escrevendo o diário, mas ao invés se pôs a pensar no que lhe aconteceria quando a Polícia do Pensamento o levasse. Não fazia diferença, se o matassem logo. Ser morto era o que esperava. Mas antes da morte (ninguém falava de tais coisas, mas todo mundo sabia) havia a rotina da confissão: rastejar no chão e implorar misericórdia, o estalo de ossos partidos, os dedos quebrados e o cabelo com coágulos de sangue. Por que passar por tudo isso, se o fim era sempre o mesmo? Por que não encurtar de alguns dias ou algumas semanas a vida do sujeito? Ninguém jamais escapava ao descobrimento, nem ninguém deixava de confessar. Quando se sucumbia à crimideia era certo que em determinada data se estava morto. Por que então aquele terror fatal do futuro, que nada alterava?
Ele tornou a tentar, com um pouco mais de êxito, conjurar a imagem de O'Brien. "Tornaremos a nos encontrar onde não há treva," dissera O'Brien. Ele sabia o que significavam aquelas palavras, ou acreditava saber. O lugar onde não havia trevas era o futuro imaginário, que nunca se podia ver mas que, pelo pensamento, se podia partilhar misticamente.