1984 - Cap. 10: Capítulo X Pág. 126 / 309

O sol, filtrando-se por entre as folhas inúmeras, ainda lhes ardia no rosto. Winston olhou para o campo e sofreu um choque, lento e curioso, de reconhecimento. Conhecia-o de vista. Um pasto velho, no restolho, com um caminho que serpeava de um lado a outro, pontilhado de cupins. Na sebe irregular, do lado oposto, os ramos dos ulmeiros balouçavam de leve na brisa, e suas folhas palpitavam em densas massas, como cabelo de mulher. Devia haver por aqui, embora não pudesse vê-lo, um regato com espraiados verdes onde nadavam mugens.

- Não há um regato por aqui? - sussurrou.

- Há, sim. Fica na beirada do outro campo. Tem peixes, uns peixes grandes. Podes vê-los nadando nas lagoas, sob os chorões, abanando a cauda.

- É a Terra Dourada... quase - murmurou ele.- Terra Dourada?

- Não é nada. Uma paisagem que às vezes vejo em sonhos.

- Olha! - sussurrou Júlia.

Um tordo pousara num ramo, a menos de cinco metros de distância, quase na altura do rosto dos dois. Era possível que não os tivesse visto. Estava ao sol, e eles na sombra. Estirou as asas, tornou a fechá-las cuidadosamente, inclinou a cabeça por um instante, como que saudando o sol, e desencadeou uma torrente sonora. Dentro do silêncio da tarde era pasmoso o volume de som. Winston e Júlia deixaram-se ficar, muito juntos, imóveis, fascinados. A música continuou, minuto após minuto, com assombrosas variações, sem nunca se repetir, quase como se o pássaro estivesse a exibir, de propósito, o seu virtuosismo. Às vezes parava por alguns segundos, abria e fechava as asas, depois inflava o peito malhado e tornava a romper na cantoria. Winston observava-o com um ar de vaga reverência. Para quem, para o que, estaria o tordo cantando? Não havia nem companheira nem rival à vista.





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