Sinopse: Como "moralidade" que é, a peça dramatiza preceitos morais. A acção desenrola-se numa praia em cujo rio esperam dois barcos: um, o do Paraíso, com um Anjo na proa; outro, o do Inferno, com um arrais infernal. Trata-se obviamente de uma figuração da morte que se filia no motivo mitológico da barca de Caronte. Tal filiação, porém, não aliena a inspiração litúrgica e moral da peça, patente na visão antitética do mundo sugerida pela coisificação dos pólos do Bem e do Mal nas duas barcas.
A esta praia vão chegando vários tipos sociais em trânsito para o seu destino, que todos crêem ser o Paraíso. A nobreza é representada pelo Fidalgo, caracterizado pela presunção, a ostentação e o desprezo pelos humildes, indiciadas pelo seu manto e pelo pagem que o acompanha, transportando-lhe a cadeira. O clero é representado pelo Frade, satirizado pela dissolução dos seus costumes corporizada na moça que traz consigo, símbolo dos seus interesses terrenos, também relacionados com a espada e com a dança que executa. A corrupção do Corregedor, que traz consigo os processos e a vara da Justiça, e do Procurador, com os seus livros, presentifica a magistratura. A exploração interesseira surge como traço fundamental da burguesia comercial, exposta pelo Onzeneiro, dotado de um enorme bolsão, o Sapateiro, com o seu avental e formas, a Alcoviteira, que traz as suas moças e os seus cofres, e o Judeu, com um bode às costas. A ignorância e a credulidade do povo são denunciadas através do Enforcado, que surge ainda com a corda.
Curiosidades: Gil Vicente põe a nu os vícios das diversas ordens sociais e denuncia a "podridão" da sociedade, recorrendo ao processo já utilizado pelos poetas da Antiguidade Clássica do Ridendo castigat mores (rindo, castigam-se os costumes).
Excerto:
«Que me digais, pois parti tão sem aviso, se a barca do Paraíso é esta em que navegais.
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