Estava a chorar. Deu-lhe para chorar sobre o caixão dum garoto, que não lhe é nada. Ele que não tem onde cair morto, chora o pão que tiraria à própria boca para dar a outro.
Morreu-lhe ontem. É decerto um gato-pingado a menos.
Primeiros farrapos da noite a esvoaçar, dessa noite de primavera negra, em que todos se põem a contar baixinho os seus sonhos à escuridão.
– Deitam flor à noite... – diz o Astrónomo.
A treva entupe os buracos das ruelas. As tochas têm debaixo da chuva sinistros clarões de incêndio. Vai uma balbúrdia na rua e o redemoinho da noite traga o bairro acastelado. Eis o enterro. Vão mulheres perdidas e uma velha a tossir, vai o Astrónomo, e na frente dum caixão de passarito, comboiando a turba, lá marcha o gato-pingado, de brandão em punho, chapéu alto e casaca a esvoaçar... A que irão eles deitar fogo na noite trágica, de lama e chuva? Mulheres perdidas, ralé, o velho tísico...
Todos os dias desaparece alguma das mulheres levada para o Hospital. Mas cantam, cantam sempre.
Sofia sorri resignada. Na vida que lhe resta?
O Gebo a sustentar.
Todas as manhãs sobe à mansarda onde o velho dorme, levando-lhe pão, que ele mastiga com um nó na garganta. Olha-a com lágrimas e só diz:
– Filha!
Dizem-me: a que recanto espantoso vai a natureza buscar esta ígnea bondade? A que esconderijo, a que veio oculto? De que força é que se constrói, de que química é que se forma a bondade profunda, inabalável, inextinguível, que sustenta e ampara os pobres?.