Os Pobres - Cap. 24: XXIII - A Árvore Pág. 134 / 158

XXIII - A Árvore

O Morto tinha um feitio singular. Uma força desconhecida – dessa corrente a que estamos sujeitos toda a vida – impelia-o para o mal. A sua maneira de falar era curiosa, como a de todas as pessoas que vivem sós e a quem o tempo sobra para refletir.

– Quem és tu? – disse-lhe o Gabiru.

– Sou filho do crime. Que te importa o meu nome?

O meu nome ao certo ninguém o saberá. Não tenho família.

– Quem te criou?

– Os ladrões.

– Se não tens onde dormir, deita-te lá em cima.

E enquanto o ladrão dormia aos solavancos, acordando de estacão, para de novo mergulhar num sono profundo, o Gabiru cismava, olhando-o.

Às vezes o ladrão tornava e o filósofo repartia com ele o seu pão. Depois dizia-lhe:

– Dorme.

Mas nessa noite o Morto, mais agitado, não quis dormir. Sentados à beira um do outro falam durante largo tempo.

– Não sei porquê, este tempo aflige – começa o Morto. – Não devia haver este tempo.

– Qual?

– Este, de primavera. Até na cadeia, quando numa noite assim o luar consegue entrar pelos buracos, os ladrões acordam sobressaltados. Tenho visto assassinos abalados. Havia duma vez um velho, que matou uma criança por nada, para se rir, e que numa noite destas encostou a boca às grades para respirar com sofreguidão e desatou a cantar. Este tempo tira a força.

– Escuta. Não ouves nada?

– Nada... Durante o tempo que persisti na cadeia conheci cada um... Os que matam inda são os que têm melhor coração.

– Tu para que roubas?

– Roubo porque tenho de roubar. É o meu fado.

Cada um tem o seu. Tudo o que a gente faz está escrito no livro do destino. Eu bem sei que inda hei-de fazer pior quando soar a hora...

– Que hora?

– A minha hora. Todos neste mundo têm uma em que cumprem aquilo para que foram criados.





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