Os Pobres - Cap. 1: Carta-Prefácio Pág. 4 / 158

O homem, crisálida do anjo, foi monstro e planta e verme e rocha e onda; foi nebulosa, foi gás impalpável, foi éter invisível.

Articulou todas as línguas, e delas conserva, obscuramente, vagas memórias dormitando. Por isso os poetas adivinham, e raros com a intuição prodigiosa do meu amigo.

Abreviando: a sua alma, diante do universo, reagiu por três formas ou em três fases emotivas. Estudei a primeira – a emoção dinâmica. O mundo resolve-se-lhe num jogo de forças, num conflito de vontades, brigando, casando-se, transfigurando-se em aparências rápidas, ilusórias. Tudo se move, tudo quer e tudo vive.

Mas o que é a vida? Chega à segunda fase. Desliza da emoção dinâmica à emoção moral. Depois de ver o mundo através dos sentidos, julga-o através da razão e da consciência.

O que é a vida?

A vida é o mal. A expressão última da vida terrestre é a vida humana, e a vida dos homens cifra-se numa batalha inexorável de apetites, num tumulto desordenado de egoísmos, que se entrechocam, rasgam, dilaceram. O Progresso, marca-o a distância que vai do salto do tigre, que é de dez metros, ao curso da bala, que é de vinte quilómetros. A fera, a dez passos, perturba-nos. O homem, a quatro léguas, enche-nos de terror. O homem é a fera dilatada.

Nunca os abismos das ondas pariram monstro equivalente ao navio de guerra, com as escamas de aço, os intestinos de bronze, o olhar de relâmpagos, e as bocas hiantes, pavorosas, rugindo metralha, mastigando lavaredas, vomitando morte.

A pata pré-histórica do atlantosauro esmagava o rochedo. As dinamites do químico estoiram montanhas, como nozes. Se a presa do mastodonte escavacava um cedro, o canhão Krup rebenta baluartes e trincheiras.

Uma víbora envenena um homem, mas um homem, sozinho, arrasa uma capital.





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