Os Pobres - Cap. 1: Carta-Prefácio Pág. 5 / 158

Os grandes monstros não chegam verdadeiramente na época secundária; aparecem na última, com o homem.

Ao pé dum Napoleão um megalosauro é uma formiga.

Os lobos da velha Europa trucidam algumas dúzias de viandantes, enquanto milhões e milhões de miseráveis caem de fome e de abandono, sacrificados à soberba dos príncipes, à mentira dos padres e à gula devoradora da burguesia cristã e democrática. O matadouro é a fórmula crua da sociedade em que vivemos. Uns nascem para reses, outros para verdugos. Uns jantam, outros são jantados. Há criaturas lôbregas, vestidas de trapos, minando montes, e criaturas esplêndidas, cobertas de oiro e de veludo, radiando ao sol. No cofre do banqueiro dormem pobrezas metalizadas. Há homens que ceiam numa noite um bairro fúnebre de mendigos. Enfeitam gargantas de cortesãs rosários de esmeraldas e diamantes, bem mais sinistros e luxuosos que rosários de crânios ao peito de selvagens.

Vivem quadrúpedes em estrebarias de mármore, e agonizam párias em alfurjas infectas, roídos de vermes.

A latrina de Vanderbilt custou aldeolas de miseráveis.

E, visto os palácios devorarem pocilgas, todo o boulevard grandioso reclama um quartel, um cárcere e uma forca.

O deus milhão não digere sem a guilhotina de sentinela.

Os homens repartem o globo, como os abutres o carneiro.

Maior abutre, maior quinhão. Homens que têm impérios, e homens que não têm lar.

Os pés mimosos das princesas deslizam luzentes de ouro por alfombras, e os pés vagabundos calcam, sangrando, rochedos hirtos e matagais. Bebem champanhe alguns cavalos do sport, usam anéis de brilhantes alguns cães de regaço, e algumas criaturas, por falta duma côdea, acendem fogareiros para morrer. Bendito o óxido de carbono, que exala paz e esquecimento! E a natureza, insensível ao drama bárbaro do homem! Guerras, ódios, crimes, tiranias, hecatombes, desastres, iniquidades, deixam-na tão indiferente e inconsciente, como o rochedo imóvel, bulindo-lhe a asa duma vespa.





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