E tudo isto cabe dentro dum caixão de pássaro!
Cabem os dias e as noites, os monólogos infindáveis, o desespero e a dor; cabe a ternura; cabem todas as construções imaginárias que nos sustentam. A vida que é tão grande não tem peso, o sonho sem limites não tem peso... Cabe ali o que maquinou e remoeu, e que é infinito ao pé desse farrapo inútil. Agora que me despeço dela para sempre, tenho de confessar que, sob esta agitação perpétua, sob este desespero inteiriço, só havia sonho e ternura. Isto durou um momento na eternidade, mas durante esse momento teve de arcar com a vida: atreveu-se a disputar com a desgraça, num debate que só terminou quando foi ao fundo. Talvez o melhor fosse a gente não teimar, talvez o melhor fosse a gente deixar-se ir logo para o fundo. Mas ela não pôde: tinha de defender a vida dos seus e a própria ilusão, e defendeu-a até cair amachucada por aquelas mãos de ferro que não perdoam nem quebram. Tombou combatendo pela vida e pelo sonho que nos acompanha até ao túmulo e para além do túmulo... Talvez o sonho dos humildes seja inútil e grotesco. Talvez seja. Mas nele entram também, como nos sonhos grandiosos, como em todos os dramas da existência, as estrelas, o céu e o inferno. Entra Deus. E isto pesa toneladas. No sonho desta figura entrava ao mesmo tempo uma ternura extraordinária. O seu desespero era ternura... E tudo isto que exigia um tablado desconforme e que liga cada ser ao vasto universo, cabe agora entre quatro tábuas de forro!
Vestida com o último vestido, pelas mãos do Gebo e da filha, ficou branca, mirrada, embebida de serenidade, mais feliz do que os vivos.