Os Pobres - Cap. 14: XIII - Essa rapariguinha Pág. 84 / 158

Noite negra! noite negra! Arqueja o lume e o prédio sob a ventania arqueja.

Eis-me a cismar absorvido nas brasas, fascinado pelo seu escarlate, ou com os olhos postos nesse outro lume, o Hospital, que brilha na escuridão como um brasido de gritos.

A pedra de que o construíram di-la-eis transida.

Foram-no acrescentando: ao granito ligaram o granito, conforme a miséria cresceu. Arrancaram-no ao coração da terra. A ossada dos montes, abraçada pelas raízes, a fraga escondida que com a água viveu e em si a guardou, sentindo-a bulir no seu seio, minar para a luz, a pedra irmã da terra, sepultada na terra, veio ter este destino – abrigo de míseros.

Ao pé da pedra no saguão a árvore cresce, cada vez maior. As suas raízes vão sob a terra até ao Hospital e os seus braços doridos quase cobrem o prédio. Dum lado o Hospital, do outro a Árvore. Só eles prosperam.

Deita a árvore pernadas e a cada inverno o granito aumenta, qual outra árvore de pedra. Num corre seiva, no outro gritos. Também o hospital estende raízes por toda a cidade.

À custa de que esforços e de que dor chegou a Árvore a crescer? Nenhum destes desgraçados sabe o seu nome, ninguém sabe dizer para o que serve. A maior parte da gente na cidade de pedra nunca viu uma árvore...

E ela teimou. Subiu. Deitou ramos esbranquiçados para o sol e para a luz, como uma árvore espectro – uma árvore dorida, uma imensa árvore dorida e estranha. Suas raízes vão sugar no hospital. Com os anos enlaçaram o granito, pouco e pouco desconjuntaram-no, abriram fendas para mergulharem mais fundo na miséria humana.

E para lá? o que há para lá? Ao findar dos dias sinto um ar vivo que é a respiração dos montes adormecidos, batendo como ondas nos muros compactos do hospital, e ruídos, claridades, mistura de oiro e verde, gorgolejos de minas, chuva de sol e de água tombando.





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