1984 - Cap. 11: Capítulo XI Pág. 133 / 309

Era uma tarde sufocante. No quartinho em cima do compartimento dos sinos, o ar era quente e estagnado, e havia um cheiro horrível de guano de pombo. Passaram horas conversando, sentados no soalho empoeirado, coberto de detritos. De vez em quando um deles se levantava para espiar pelas seteiras, verificar que não vinha ninguém.

Júlia tinha vinte e seis anos de idade. Morava numa hospedaria com outras trinta moças ("Sempre o mau cheiro das mulheres! Como eu odeio as mulheres!" exclamava, entre parênteses), e trabalhava, como ele imaginara, nas máquinas novelizadoras do Departamento de Ficção. Apreciava o trabalho, que consistia principalmente em fazer funcionar e manter em bom estado um poderoso e complicado motor elétrico. Era "inesperta" porém gostava de usar as mãos e sentia-se à vontade com maquinaria. Sabia descrever todo o processo de composição de um romance, desde a diretriz geral traçada pelo Comité de Planeamento até os retoques finais, pelo Esquadrão de Reescritores. Ela, porém, não se interessava pelo produto acabado. "Não tinha gosto pela leitura," disse. Para ela, os livros não passavam de artigos que tinham de ser produzidos, como botinas ou compotas.

Não se recordava de coisa alguma antes de 1960, e a única pessoa que conhecera e falava frequentemente dos dias anteriores à Revolução era um avô, que desaparecera quando Júlia tinha oito anos. Na escola, capitaneara o time de hóquei e dois anos consecutivos ganhara o troféu de ginástica. Fora chefe de tropa nos Espiões e secretária distrital da Liga da Juventude antes de entrar para a Liga Juvenil Anti-Sexo. Sempre se demonstrara excelente cidadã. Até fora (sinal infalível de boa reputação) escolhida para trabalhar na Pornosec, a sub-secção do Departamento de Ficção que produzia pornografia barata para distribuição entre os proles.





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