1984 - Cap. 3: Capítulo III Pág. 32 / 309

- Dobrar e esticar os braços! - ordenou. - Acompanhai o meu ritmo. Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro! Vamos, camaradas, um pouco de vida nisso! Um, dois, três, quatro! Um, dois, três, quatro!...

A dor do acesso de tosse não afugentara inteiramente do espírito de Winston a impressão produzida pelo sonho, e de certo modo os movimentos rítmicos do exercício a reavivaram. Enquanto atirava mecanicamente os braços para frente e para trás, afivelando no rosto o ar de carrancudo prazer que se considerava recomendável durante a Educação Física, lutava para recordar-se do período obscuro da infância. Era extraordinariamente difícil. Do acontecido antes de 1960, tudo desbotara. Não havia anais a que fazer referência, e portanto até o fio da vida pessoal perdia nitidez. Lembrava-se de momentosos acontecimentos que com toda probabilidade não tinham tido lugar, recordava-se dos pormenores de incidentes sem conseguir recapturar-lhes a atmosfera, e havia longos períodos em branco, aos quais nada podia atribuir. Tudo então fora diferente. Tinham sido diferentes até os nomes de países, e suas formas no mapa. A Pista N.º 1 não tinha esse nome naquela época: chamava-se Inglaterra, ou Grã-Bretanha, embora Londres - disso tinha certeza quase absoluta - sempre tivesse sido Londres.

Winston não podia lembrar definitivamente uma época em que o país não estivesse em guerra, mas era evidente um intervalo de paz bastante longo durante a sua infância, porque uma das suas mais longínquas recordações era de um bombardeio aéreo que parecera a todos surpreender. Fora talvez quando a bomba atômica caíra em Colchester. Não se lembrava do bombardeio em si, mas lembrava-se do pai a segurar-lhe a mão com força, enquanto corriam para um lugar nas profundezas da terra, dando voltas e voltas numa escada espiral que fazia ruído sob seus pés e que por fim lhe cansou tanto as pernas que ele começou a choramingar e pararam para descansar.





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