Ecce Homo - Cap. 10: Assim falou Zaratustra Pág. 80 / 115

por exemplo, se coloque a par de tudo quanto foi até hoje tido como sério, a par de toda a solenidade na atitude, na palavra, no tom, no olhar, na moral e no dever constituindo a sua paródia viva e involuntária; com o qual, entretanto, principia talvez a grande seriedade, com o qual se põe o verdadeiro enigma, o destino da alma se encontra, a agulha aponta o norte, «a tragédia começa».

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Tem acaso alguém, neste fim do século XIX, claro conceito do que os poetas das grandes épocas de outrora chamavam «inspiração»? Supondo que não, vou eu aqui explicá-lo.

Por menor que seja o vestígio da crença antiga, tende o homem de facto a aceitar que não é mais que a encarnação, o porta-voz, o médium de poderes superiores. A ideia de revelação, com o sentido de que subitamente se patenteia ao nosso olhar ou ao nosso ouvido alguma coisa de inelutavelmente seguro e inefável, alguma coisa que nos abala e nos transmuda até ao mais fundo do nosso ser, exprime com simples rigor uma situação real. Ouve-se sem se procurar, alcança-se sem se pedir. Como o relâmpago, surge então o pensamento com necessidade absoluta, na forma que lhe corresponde, sem tateio, sem escolha. Ê exaltação, cujo excesso muitas vezes a nossa alma alivia com uma torrente de lágrimas: caminho ignorado em que os nossos passos, alheios à nossa vontade, ora se apressam, ora se suspendem, êxtase que por completo nos subjuga, repercutindo num estremecimento que nos percorre toldo, desde a cabeça aos pés; plenitude de alegria em que as formas extremas do sofrimento e do terror não contam já como contraste mas aparecem como partes integrantes e indispensáveis, como tons necessários no seio daquele extraordinário manancial de luz; impulso rítmico que abrange, em suas





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