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Capítulo 8: VII - Primavera

Página 55
Fazem-lhe nicho as arcarias e arrancam à treva, para se embrulharem, um farrapo do seu manto. Às vezes da escuridão sai um perfil, mãos que querem arrepelar, mas logo tudo se some entre roupagens, que têm a rigidez trágica das estátuas. Só a mão, que o lampião ilumina, fica decepada. Por vezes toda a figura baça e amolgada surge, para logo se aniquilar. A lama faz-lhe pedestal, passa o enxurro, e elas nem se mexem, petrificadas.

Algumas, de viverem dum passado de fogo, parecem mirradas, outras procuram minguar, extinguir-se, não ocupar lugar na terra. E entretanto as mulheres vão cantando na mesma toada de catástrofe, que a noite traga, como farrapos de sonho espezinhado...

Todas as noites o Gabiru lá vai sentar-se a um canto a cismar. Olha a Mouca sem palavra e sonha. Conhecem-no os ladrões e os soldados, e elas, vendo-o entrar, esgrouviado e triste, exclamam:

– Lá vem o enguiço!

A Mouca às risadas diz:

– Cá temos o enguiço!...

Mas em vão! Ele, com as enormes pernas dobradas, alheado, sem ver nem ouvir, pensa num amor ideal e monologa baixinho, entre as mulheres, os ladrões e os soldados:

«O que eu sonho! Eu que sou tão tímido, ponho-me a falar e a cismar... E tanto cismo!... Troco tudo...

Como é que tu gostas de mim, que nem te sei sorrir?

Ando a inventar uma língua nova, que seja como a das fontes e a das árvores, quando desponta março, para te exprimir o que sinto. Todas as palavras me parecem mirradas e servidas.

Olha, diz-me: chamas-te Maria, não é?» E entretanto os ladrões e as mulheres conversam:

– Tu não te calarás, estupor!

E uma tísica, magra, só com a pele e o osso, explica:

– Uma mulher da vida... Que estão vocês a dizer das mulheres da vida? Eu inda queria ver... Quando tu não tens pão, quem to dá?

E o ladrão responde:

– És tu.

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pág. 55 (Capítulo 8)

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Capa do livro Os Pobres
Páginas: 158
Página atual: 55

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
Carta-Prefácio 1
I - O enxurro 18
II - O Gebo 23
III - As mulheres 28
IV - O Gabiru 35
V - História do Gebo 42
VI - Filosofia do Gabiru! 49
VII - Primavera 52
VIII - Memórias de Luísa 59
IX - Filosofia do Gabiru 63
X - História do Gebo 67
XI - Luísa e o morto 73
XII - Filosofia do Gabiru 77
XIII - Essa rapariguinha 81
XIV - O escárnio 87
XV – Fala 94
XVI - O que é a vida? 97
XVII - História do Gebo 109
XVIII - O Gabiru treslê 114
XIX - A Mouca 118
XX - A outra primavera 121
XXI - A Morte 126
XXII - A filosofia do Gabiru 130
XXIII - A Árvore 134
XXIV - O ladrão e a filha 139
XXV - Natal dos pobres 143
XXI - Aí têm os senhores a natureza! 154