Abandonava-lhe o pobre corpo macerado, cheirando a enfermaria, já vindo à terra com este destino amargo – ser explorada. Ele deixou-a logo e ela continuou a servi-los, com o mesmo sorriso, mais descorada e triste. Um dia acordou grávida e patroa pô-la na rua. Remexeu-lhe a trouxa e gritou:
– O que tu merecias era ir para a polícia.
Com um filho na barriga e a trouxa debaixo do braço pôs-se a andar pelas portas, despedida das casas logo que lhe viam o ventre, até que foi dar o rio pregava e o ladrão ria.
Calou-se. Só se ouvia o chapinhar da maré. Só o rio pregava e o ladrão ria.
Uma luzinha, que brilhava ao largo deixando na água um fio de oiro trémulo, de todo se sumira. Então o Morto, no silêncio e no negrume, começou:
– Tu que imaginas que é isto?
– Isto quê, senhor?
– A vida. Todos querem mas é enganar. Os ricos fazem mal aos pobres, os pobres roubam os ricos. Todos querem fazer chorar os mais.
– Todos?
– Todos. Eu mesmo posso-te agora matar, posso-te fazer o mal que quiser. Não grites, que é pior. Ninguém te acode.
– Eu não grito.
Deitou-lhe as mãos enormes e frias puxou-a para si para a olhar no escuro:
– A tua mãe botou-te fora, para não te criar, o teu patrão enganou-te. Tu que imaginas? E que podias fazer senão deixá-lo enganar-te? Que hás-de fazer? Hão-de enganar-te sempre e só te não desamparará...
– Quem? – perguntou ansiosa.
– A fome. Hás-de andar por aí até caíres de velha, aos pontapés e às voltas com a desgraça.
Agora vais ser minha... A desgraça é que pode tudo, ninguém no mundo tem mais força. Se tiveres fome, hão-de-se rir de ti e dar-te terra a comer.
– Ó senhor! senhor! Mas então para que me criaram no asilo? Era melhor terem-me deixado morrer. Eu não faço mal a ninguém.