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Capítulo 14: XIII - Essa rapariguinha

Página 82

Arqueja o lume no escuro todo povoado de vozes, que vão pregar, mas que logo se calam sufocadas. A ventania passa lá fora e na escada soam os passos do gato-pingado; as mulheres gargalham e eu fico sozinho, a cismar, neste velho casarão, com os olhos presos no lume que esmorece...

Por fim tudo se confunde na minha alma, os vivos e os mortos, o sonho e a realidade. Há dias em que não distingo as feições dos que habitam comigo no prédio, das feições dos que estão enterrados na cova. Tanto vale o fantasma que me persegue como este homem que pára à minha porta gemendo.

E ei-lo outra vez no patamar a tossir, com o peito escalavrado e roto!

Na verdade não conheço ninguém tão nulo, banal como a própria banalidade. A sorrir, a amar, e até com o coração despedaçado, esse homem fazia sempre rir. Os próprios inimigos tinham por ele piedade ou desprezo.

Sim, piedade ou desprezo, porque era incapaz de ódios.

Nunca pudera aprender a vingar-se e sabiam-no. A mim mesmo me fez algum bem, que depois lhe retribui em esmolas, ao encontrá-lo estatelado na rua: Nunca lhe achei interesse: a sua vida é a vida de todas as criaturas que se afundam por falta de tino prático para a luta:

enlamear, mentir, triunfar enfim. A vida (oh todas as sólidas filosofias o ensinam) é de quem possui a força e aptidão... Mas hoje estou num dia enervado e sinto-me sozinho neste velho casarão. Parece que a noite tem vozes e que os meus crimes de outrora (há tanto esquecidos!...) encontram enfim palavras e se põem a falar dentro em mim.

É talvez para fugir a esta obsessão que me deito a cismar na vida deste ser banal como a própria banalidade.

Nem sei como conte, com que palavras faça a narração duma existência que é como um trapo que se deita fora todo molhado de lágrimas.

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pág. 82 (Capítulo 14)

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Capa do livro Os Pobres
Páginas: 158
Página atual: 82

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
Carta-Prefácio 1
I - O enxurro 18
II - O Gebo 23
III - As mulheres 28
IV - O Gabiru 35
V - História do Gebo 42
VI - Filosofia do Gabiru! 49
VII - Primavera 52
VIII - Memórias de Luísa 59
IX - Filosofia do Gabiru 63
X - História do Gebo 67
XI - Luísa e o morto 73
XII - Filosofia do Gabiru 77
XIII - Essa rapariguinha 81
XIV - O escárnio 87
XV – Fala 94
XVI - O que é a vida? 97
XVII - História do Gebo 109
XVIII - O Gabiru treslê 114
XIX - A Mouca 118
XX - A outra primavera 121
XXI - A Morte 126
XXII - A filosofia do Gabiru 130
XXIII - A Árvore 134
XXIV - O ladrão e a filha 139
XXV - Natal dos pobres 143
XXI - Aí têm os senhores a natureza! 154