Eurico, o Presbítero - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 9 / 186

A poesia, dedicada quase exclusivamente entre os Visigodos às solenidades da Igreja, santificava a arte e aumentava a veneração pública para quem a exercitava. O nome do presbítero começou a soar por toda a Espanha, como o de um sucessor de Dracôncio, de Merobaude e de Orêncio.

Desde então ninguém mais lhe seguiu os passos. Assentado nos alcantis do Calpe, vagabundo pelas campinas vizinhas ou embrenhado pelas selvas sertanejas, deixaram-no tranquilo embalar-se nos seus pensamentos. Na conta de inspirado por Deus, quase na de profeta, o tinham as multidões. Não gastava ele as horas que lhe sobejavam do exercício de seu laborioso ministério numa obra do Senhor? Não deviam esses hinos da soledade e da noite derramar- se como um perfume ao pé dos altares? Não completava Eurico a sua missão sacerdotal, revestindo a oração das harmonias do céu, estudadas e colhidas por ele no silêncio e na meditação? Mancebo, o numeroso clero das paróquias vizinhas considerava-o como o mais venerável entre os seus irmãos no sacerdócio, e os velhos procuravam na sua fronte, quase sempre carregada e triste, e nas suas breves mas eloquentes palavras o segredo das inspirações e o ensino da sabedoria.

Mas, se os que o acatavam como um predestinado soubessem quão negra era a predestinação do poeta, porventura que essa espécie de culto de que o cercavam se converteria em compaixão ou antes em terror. Os hinos tão suaves, tão cheios de unção, tão íntimos, que os salmistas das catedrais de Espanha repetiam com entusiasmo eram como o respirar tranquilo do sono da madrugada que vem depois de arquejar e gemer de pesadelo nocturno. Rápido e raro passava o sorrir nas faces de Eurico; profundas e indeléveis eram as rugas da sua fronte. No sorriso reverberava o hino pio, harmonioso, santo dessa alma, quando, alevantando-se da terra, se entranhava nos sonhos de um mundo melhor. Às rugas, porém, da fronte do presbítero, semelhantes às vagas varridas pelo noroeste, respondia um canto lúgubre de cólera ou desalento, que rebramia lá dentro, quando a sua imaginação, caindo, como a águia ferida, das alturas do espaço, se rojava pela morada dos homens.





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