O Retrato de Ricardina - Cap. 11: CAPÍTULO XI - MEMÓRIAS DOLOROSAS Pág. 69 / 178

Referiu ele que a senhora se afligira com a inesperada notícia; mas sossegara e confiara no médico, rogando-lhe muito que de manhã lhe desse aviso do estado do enfermo. A carta que ela recebeu no dia seguinte escreveu-a Bernardo. No post-scriptum dizia duas palavras das suas melhoras; o restante, que era muitas páginas, continha um pungente recordar-se da sua infância, desde pastorinho de um rebanho do seu pobre pai, desde aprendiz de pintura, através dos anos escuros da sua juventude, alheio das alegrias que o ouro levara à quinta dos seus avós. Que lhe fazia a ele riqueza? Sempre triste e sonhador nos benefícios da morte, sempre a desejá-la, até àquela hora roubada aos prazeres do Céu, se o Céu os tinha iguais à felicidade humana - hora suprema em que ajoelhara aos pés da mulher amada por espaço de catorze anos, primeiro com o amor do inocente, depois com a paixão do homem, arrancado à mortalha de um hábito.

Ricardina leu alvoroçada a longa carta em que apenas se lhe transluzia palavra de esperança. Devia de estar muito escurecida e excruciada de maus presságios a alma que se empenhava tanto em desafogar vagamente angústias sem justificado nem claro motivo! Manteve-se Ricardina todo o dia pensativa e chorosa, ideando conjeturas despropositadas até ao desatino de entrever a possibilidade de ser aborrecida do homem a quem não dava o contentamento absoluto. A suspeita seria incompatível com a inocência, se Ricardina ignorasse do coração humano as revelações que a triste mãe lhe fizera no convento, contando-lhe, com expansão de amiga, o castigo da sua cegueira.

E, como durante o dia não recebesse notícias de Bernardo, nem às dez da noite o médico tivesse ido explicar-lhe a tristeza do irmão, Ricardina, às onze horas, ordenou a um criado que lhe ensinasse o caminho e casa do seu amo.





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