CAPÍTULO II - UM AMIGO! Ricardina era a mais doce alma que os anjos compuseram da graça e formosura do Céu. Tinha ela 13 anos quando saiu com o seguinte lance de extremada bondade. Norberto Calvo era um criado do seu pai, o seu braço direito nas lutas com os fregueses por causa das freguesas, um valentão “de rópia e chulice”, como lá dizem.
Este Norberto era filho de uma velha pobríssima que habitava um cardenho, na freguesia próxima. A velha tinha consigo uma nora cega, viúva, e cinco netos. O filho, já defunto, tinha hipotecado, com permissão da mãe, o cardenho e horta a uma dívida de oito moedas de ouro. O credor, cansado de pedir e esperar o seu dinheiro, penhorou a casa e mandou ler à executada o mandado de despejo em vinte e quatro horas. A velha, consternadíssima, veio ter-se com o filho, pedindo-lhe remédio. Norberto apenas tinha três moedas com quinze tostões, e o abade estava fora da aldeia. Aventou-se-lhe o pior dos expedientes. Sabia em qual gaveta de um contador seu amo tinha dinheiro. Não estavam em casa a senhora e as meninas, pensou ele. Foi ao quarto do abade, abriu a tremer a gaveta e roubou três peças. Perfez as oito moedas com as soldadas que tinha, e mandou embora a mãe, recomendando-lhe que rezasse a Nossa Senhora por ele num aperto de muita necessidade.
A alcova das meninas vizinhava do quarto do seu pai, interposta uma sala. Ricardina estava a escrever o seu traslado, e dera tento de entrar gente ao aposento da mãe e tirar pela gaveta. Espreitou pelo espelho da fechadura sobre o corredor que conduzia ao quarto do pai, e viu Norberto descalço a evadir-se pé ante pé. Desconfiou do furto; mas não disse nada. Saiu dai a pouco, e encontrou no pomar o criado. Viu-o muito amarelo, com os olhos vermelhos de chorar e perguntou-lhe:
- Tu que tens, Norberto?
- Não tenho nada, fidalga.