1984 - Cap. 17: Capítulo XVII Pág. 189 / 309

No terceiro dia, seus olhos doíam insuportavelmente e precisava limpar os óculos repetidas vezes. Era como se lutasse contra uma esmagadora missão física, algo que podia recusar e que, no entanto, tinha ânsia neurótica de realizar. Tanto quanto podia se lembrar, não o perturbava o fato de ser uma cínica mentira cada palavra que murmurava no falascreve, cada rabisco do seu lápis-tinta. Tinha a ânsia de todos os colegas do Departamento de realizar uma falsificação perfeita. Na manhã do sexto dia diminuiu o chorrilho de papeletas. Durante quase meia-hora, nada saiu do tubo; depois caiu um cilindro, e depois nada. Ao mesmo tempo o trabalho amainava em toda parte. Um profundo suspiro, embora secreto, levantou-se em toda a repartição. Encerrara-se uma formidanda proeza, que nunca poderia ser mencionada. Era agora impossível a qualquer ser humano provar documentadamente que houvera uma guerra com a Eurásia. Às doze em ponto, anunciou-se inesperadamente que todos os funcionários do Ministério estavam de folga até a manhã seguinte. Winston, ainda levando a pasta que continha o livro, e que tivera aos pés enquanto trabalhava, e sob o corpo enquanto dormia, foi para casa, barbeou-se e quase adormeceu no banho, embora a água não estivesse mais do que tépida.

Com uma espécie de voluptuoso estralar de juntas, subiu a escada da loja do Sr. Charrington. Estava cansado, mas não tinha mais sono. Abriu a janela, acendeu o sujo fogareiro de óleo e encheu de água uma caçarola, para o café. Júlia não devia demorar; enquanto não viesse, leria o livro. Sentou-se na poltrona esfiapada e abriu a pasta.

Um pesado volume negro, numa encadernação tosca, sem nome nem título na capa. O tipo também parecia ligeiramente irregular.





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