1984 - Cap. 8: Capítulo VIII Pág. 103 / 309

Ao que parecia, o Sr. Charrington era um viúvo de sessenta e três anos e residia na loja havia trinta. Todo esse tempo tencionara mudar o nome da placa, mas nunca tomara a decisão final. Durante a palestra, a cantiga meio esquecida ecoou na cabeça de Winston. Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente. Me deves três vinténs, dizem os sinos de S. Martinho! Era curioso, mas repetindo a letra tinha a ilusão exata de ouvir sinos, os sinos de uma Londres perdida que ainda existia nalguma parte, disfarçada e esquecida. De suas torres fantasmais ele parecia ouvi-los bimbalhando. Entretanto, até onde podia recordar, nunca na vida ouvira um sino.

Despediu-se do Sr. Charrington e desceu a escada sozinho, para que o velho não o visse examinando a rua antes de sair. Já resolvera que, depois de um intervalo apropriado - um mês, por exemplo, - correria de novo o risco de visitar a loja. Talvez não fosse mais perigoso do que falhar a um sarau no Centro. A grande tolice fora voltar ali, depois de comprar o diário, sem saber se o dono da loja merecia confiança. Contudo...! Sim, pensou, haveria de voltar. Compraria novas amostras de linda bobagem. Compraria a gravura de S. Clemente dos Dinamarqueses, desemoldurando-a e levando-a para casa escondida dentro do macacão. Arrancaria da memória do Sr. Charrington o resto da cançoneta. Até o projeto lunático de alugar o quarto de cima tornou a cintilar no seu juízo. Durante uns cinco segundos talvez a exaltação o tornou descuidado e ele pisou a calçada sem dar uma única espiadela preliminar. Ia até trauteando, com melodia improvisada Laranjas e limões, dizem os sinos de S. Clemente, Me deves três vinténs, dizem os.... De repente o coração pareceu-lhe gelar no peito, e as tripas derreterem.





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