1984 - Cap. 12: Capítulo XII Pág. 149 / 309

No sonho, a sua sensação mais profunda era sempre de auto-engano, porque de fato não sabia o que havia atrás da muralha de treva. Com um esforço fatal, como se arrancasse um pedaço do próprio cérebro, poderia ter trazido o mistério à luz. Mas sempre acordava sem descobrir o que era: de certo modo, porém, ligava-se com o que dizia Júlia quando a interrompera.

- Desculpa - pediu ele. - Não é nada. É que não gosto de ratos e pronto.

- Não te preocupes, querido, não deixarei que os bicharocos entrem aqui. Vou calafetar o buraco com aniagem, antes de sairmos. E da próxima vez trago reboco e tapo o orifício direitinho.

Já fora meio esquecido o instante negro de pânico. Sentindo-se ligeiramente envergonhado de si mesmo sentou-se, encostando na guarda da cama. Júlia saltou, vestiu o macacão e fez café. O cheiro que se elevou da caçarola era tão poderoso e inebriante que eles fecharam a janela, não fosse alguém senti-lo e começar a especular. Ainda melhor que o sabor do café era a textura sedosa que lhe dava o açúcar, de que Winston quase esquecera após tantos anos de sacarina. Com a mão no bolso e segurando uma fatia de pão com geleia na outra, Júlia passeou pelo quarto, dando olhadas indiferentes à estante de livros, indicando a melhor maneira de consertar a mesa dobradiça, atirando-se na velha poltrona estofada para ver se era confortável, e examinando o absurdo relógio de doze horas com uma espécie de chacota tolerante. Levou para a cama o peso de papéis, para examiná-lo na luz melhor. Ele tomou-o, fascinado, como sempre, pelo aspeto macio, de água de chuva, do vidro secular.

- Que é isto? - indagou Júlia. - Não creio que seja nada... quer dizer, não creio que tenha servido para nada.





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