Ei-lo capitão. E lá embarca com a menina Cunegundes, a velha, dois criados e os dois cavalos andaluzes que tinham pertencido ao. Sr. Inquisidor-Mor de Portugal.
Durante toda a travessia discorreram muito sobre a filosofia do pobre Pangloss.
- Vamos para um mundo novo - dizia Cândido -; é lá, sem dúvida, que tudo está bem. Porque é preciso confessar que temos razões para nos queixarmos do que se passa no nosso, tanto sob o aspecto físico como moral..
- Amo-vos de todo o meu coração - dizia Cunegundes -, mas sinto ainda a alma sobressaltada por tudo o que vi e sofri.
- Tudo irá bem - replicava Cândido. - O mar deste novo mundo é já muito diferente dos mares da Europa: é mais calmo, tem ventos mais constantes. É certamente este novo mundo o melhor dos mundos possíveis.
- Deus o queira! - dizia Cunegundes. - Mas fui tão horrivelmente infeliz naquele em que vivi, que o meu coração deixou quase de ter esperança.
- Queixais-vos - interveio a velha -, mas que diríeis se tivésseis sofrido infortúnios semelhantes aos meus!
Cunegundes pôs-se a sorrir e achou graça à velha, por ter a pretensão de se julgar mais infeliz do que ela.
- Ai, minha pobre ama - disse Cunegundes -, a menos que tenhais sido violada por dois búlgaros, que tenhais recebido duas facadas na barriga, que vos tenham demolido dois dos vossos castelos, que tenham degolado à vossa vista dois pais e duas mães e que vossos dois amantes tenham sido açoitados num auto-de-fé, não podereis considerar-vos mais infeliz do que eu. Lembrai-vos que nasci baronesa com setenta e dois costados e fui obrigada a ser cozinheira.
- Menina, vós não sabeis de que estirpe eu sou - respondeu a velha. - E se eu vos mostrasse o traseiro, não falaríeis como o acabastes de fazer e suspenderíeis os vossos juízos a respeito de tal assunto.