Eurico, o Presbítero - Cap. 3: Capítulo 3 Pág. 11 / 186

As cenas de dissolução social que naquele tempo se representavam na Península eram capazes de despertar a indignação mais veemente em todos os ânimos que ainda conservavam um diminuto vestígio do antigo carácter godo. Desde que Eurico trocara o gardingato pelo sacerdócio, os ódios civis, as ambições, a ousadia dos bandos e a corrupção dos costumes haviam feito incríveis progressos. Nas solidões do Calpe tinha reboado a desastrada morte de Vitiza, a entronização violenta de Roderico e as conspirações que ameaçavam rebentar por toda a parte e que a muito custo o novo monarca ia afogando em sangue. Ebas e Sisebuto, filhos de Vitiza, Opas, seu tio, sucessor de Siseberto na Sé de Híspalis, e Juliano, conde dos domínios espanhóis nas costas de África, do outro lado do Estreito, eram os cabeças dos conspiradores. Unicamente o povo conservava ainda alguma virtude, a qual, semelhante ao líquido transvasado por cendal delgado e gasto, escoara inteiramente através das classes superiores. Oprimido, todavia, por muitos géneros de violências, esmagado debaixo dos pés dos grandes que lutavam, descrera por fim da pátria, tornando-se indiferente e covarde, prestes a sacrificar a sua existência colectiva à paz individual e doméstica. A força moral da nação tinha, portanto, desaparecido, e a força material era apenas um fantasma; porque debaixo das lorigas dos cavaleiros e dos saios dos peões das hastes não havia senão ânimos gelados, que não podiam aquecer-se ao fogo do santo amor da terra natal.

Com a profunda inteligência de poeta, o presbítero contemplava este horrível espectáculo de uma nação cadáver e, longe do bafo empestado das paixões mesquinhas e torpes daquela geração degenerada, ou derramava sobre o pergaminho em torrentes de fel, de ironia e de cólera a amargura que lhe trasbordava do coração ou, recordando-se dos tempos em que era feliz porque tinha esperança, escrevia com lágrimas os hinos de amor e de saudade. Das elegias tremendas do presbítero alguns fragmentos que duraram até hoje diziam assim:





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