Via-se distintamente o reluzir das armas, e vários soldados que tinham ajudado a repelir os primeiros saltos dos africanos nas costas de Espanha reconheceram logo os trajos e as armas dos árabes. Entre estes, porém, divisavam-se muitos godos, pelas armaduras pesadas, pelos largos ferros dos franquisques e pelas estringes mais curtas que as amplas vestiduras dos filhos do Oriente. Daí a pouco, toda a frota velejou para o lado do Calpe, e, quando anoiteceu, as faldas da montanha apareceram alumiadas por muitos fachos. Os árabes tinham desembarcado.
A ansiedade era indizível. Demudadas as faces, olhávamos uns para os outros. Eles tremiam por si; eu pela sorte da Espanha. Mas porque entre esses que pareciam inimigos se achava tão avultado número de godos? Esta pergunta significava a nossa derradeira esperança.
Ao entenebrecer, alguns barqueiros saíram ao largo e, vogando surdamente, foram espiar a frota. Tomando os atalhos mais curtos, eu encaminhei-me sozinho para o Calpe, cujo vulto gigante, rodeado de fachos ao sopé, negrejava no topo sobre o fundo alvacento do céu limpo de nuvens, onde a Lua passava tranquila, embargando com o seu clarão pálido o cintilar das estrelas.
Era alta noite quando cheguei à montanha. Subindo pelas quebradas, saltando precipícios, cosendo-me com as fragas tortuosas, descendo pelos leitos das torrentes, cheguei a um rochedo contíguo à planície que das raízes da serrania vai morrer no rolo do mar, na costa oriental da baía. Era aí que os árabes, desamparando a frota, se haviam acampado. Comprimindo o alento, aproximei-me insensivelmente de uma tenda mais vasta, alevantada junto do penhasco a que eu chegara sem ser percebido. Por uma fenda que deixavam as telas mal unidas do pavilhão, descortinei o que se passava no interior à luz das tochas que tinham nas mãos dois etíopes, cujos rostos negros contrastavam com a brancura das suas roupas. Assentado no chão, com os braços cruzados, um árabe mancebo parecia escutar atentamente um guerreiro godo que, em pé no meio de outros dois, tinha as costas voltadas para mim. Com espanto e ao mesmo tempo com alegria, percebi que se exprimia em romano rústico, o qual, daí a pouco, vi que o moço árabe falava como se fosse a própria linguagem. Comecei então a escutar atentamente.