Robinson Crusoe - Cap. 10: Capítulo 10 Pág. 175 / 241

Mesmo isto me fez notar, com frequência e com admiração, que se Deus se servira, na Sua infinita sabedoria e na criação das Suas obras, privar um grande número de criaturas do melhor uso ao qual as suas faculdades intelectuais pudessem ser aplicadas, tinha-lhes dado, apesar disso, os mesmos afectos, o mesmo reconhecimento para os serviços, o mesmo ressentimento para as injúrias, a sinceridade, a fidelidade, enfim, todas as qualidades para fazer e decidir o bem que a nós mesmos nos havia dispensado, e que aquela pobre gente empregava todas essas faculdades às vezes também melhor do que nós quando Deus se dignava apresentar-lhes ocasião de exercê-las.

Mas voltemos ao meu novo companheiro. Agradava-me imenso, e ocupava-me a ensiná-lo a ser útil, hábil e industrioso, mas sobretudo a falar comigo e a compreender-me; era o melhor discípulo que jamais existiu; tão risonho, tão constantemente aplicado e tão contente quando podia entender-me ou fazer-se entender por mim, que achava um verdadeiro prazer em falar com ele. A minha existência era então tão doce que, se não fosse o temor dos selvagens, não teria sentido desejos de sair do lugar em que vivia.

Três ou quatro dias depois do meu regresso à fortaleza resolvi afastar Sexta-Feira do seu horrível apetite de canibal, fazendo-o provar outro género de carne. Levei-o uma manhã ao bosque, onde tencionava matar uma das minhas jovens lamas domesticadas para a preparar em casa; mas no caminho avistei uma lama deitada à sombra com as suas duas crias. Fiz parar ali Sexta-Feira.

- Pára! - disse-lhe, fazendo-lhe sinais para que não se movesse.

A seguir apontei, disparei e matei uma das crias.

O pobre selvagem, que já me tinha visto matar um dos seus inimigos a grande distância, sem saber como, assustou-se imenso e pôs-se a tremer como um desesperado de tal modo que julguei que ia cair de costas. Assim, sem ver se tinha ou não morto a lama, só pensou em abrir o jaquetão para ver se estava ferido.