A dor não era irredutível. A alma, vencendo-a, converteu-a em amor. Não há beleza esplendente que não fosse dor caliginosa. A flor é a dor da raiz, a luz a dor das estrelas, e a virtude ou o génio a dor ascendente do éter luminoso, cristalizando no homem, ao fim dum calvário inenarrável de milhões e milhões de séculos sem conta. A alma de Jesus proclama o triunfo da santidade sobre o crime, como o corpo de Vénus entoa a vitória da linha viva e musical sobre a linha inerte, a linha bruta e desarmónica. Beleza de essência ou beleza de aparência, virtude de Jesus ou formosura de Vénus, têm, ancestralmente, a iniciá-las o mesmo horror e a mesma imperfeição. Do verbo odiar nasceu, evolutivamente, o verbo amar. Se o homem foi tigre, o beijo foi dentada.
Toda a alegria vem do amor, e todo o amor do sofrimento.
A alegria é o sofrimento amoroso, o sofrimento espiritualizado. Deus é, pois, o amor infinito, vencendo infinitamente a infinita dor. E, vencendo a infinita dor, ele é a infinita alegria, a paz absoluta, a glória eterna, a bem-aventurança ilimitada. Deus sustenta-se realmente, como diz o meu amigo, do sofrimento universal.
Nos meus Ensaios Espirituais, ainda inéditos, eu exprimo inúmeras vezes a mesma ideia. Quer ver?
Destaco uma página:
«Só a dor infinita produz o amor absoluto. Deus, amor absoluto, sustenta-se do sofrimento do universo. É uma luz eterna, alimentada por um incêndio eterno. Deus, amor absoluto, projecta-se em dor infinita de natureza.
Para ser a perfeição absoluta, encarnou-se na imperfeição ilimitada do universo. Deus não se compreende sem universo. O perfeito vive do imperfeito, como a chama vive do combustível. O mal é a condição do bem, o erro a condição da verdade, o crime a condição da virtude.