Os Pobres - Cap. 1: Carta-Prefácio Pág. 13 / 158

O abismo insondável, retraindo-se, cristalizou num ponto; e esse ponto, adquirindo voz, confessou o abismo, revelou o insondável. Almas inúmeras se agrupam na alma sintética e central. Há em cada alma infinidades de almas.

E umas tão horríveis e loucas, que as escondemos para que as não vejam, e outras tão inconscientes e profundas que, habitando connosco, as não chegamos sequer a conhecer. O poeta dos Pobres conheceu-as e confessou-as todas. Desde a mais clara à mais crepuscular e tenebrosa, irradiou-as todas plenamente, no estado nascente, ingénuas e vivas, sem ocultar um única.

O seu Deus não é o último termo duma cadeia lógica de silogismos. Não o descobre pela razão, atinge-o pela emoção. O meu amigo não raciocina, isoladamente, com o encéfalo. Raciocina de chofre e com todo o corpo. As ideias brotam-lhe espontâneas, como o sangue da facada ou a flor da haste. Palpitam de vida, mas vida viva, – no estado genésico. Não falam, não discursam, não discorrem. Gritam, uivam, ululam, gemem, rezam, blasfemam. Ciclones de ais, de orações, de imprecações, de fúrias, de lamentos. O meu amigo pensa, forma juízos, como as electricidades formam raios.

O seu Deus é a expressão da sua emotividade. Ou, bem no fundo, da sua moralidade. Só crê em Deus, só descobre Deus, quando em si, pela virtude, momentaneamente o realiza, ou tenta realizar. Se a bondade e a paz lhe existem no coração, a natureza resolve-se-lhe em Deus, em amor supremo. Mas, daí a instantes, o egoísmo invade-o, e não é já em Deus, é na química, que a explicação do mundo lhe aparece. Qual a fonte do ser, a razão da vida? É o acaso, é o apetite, é o amor, é Deus ou Satanás, conforme as horas ou os dias, conforme o equilíbrio instável da sua carne e do seu espírito.





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