Logo de começo, a página 76, define Deus abrasadoramente numa língua de chamas, num paroxismo de dor e de misericórdia, num êxtase candente e lagrimoso, tão férvido e tão lúcido, que arrebata e deslumbra. Fulgiu-lhe súbito, no âmago da alma, a verdade da vida. A vida é um calvário. Sobe-se ao amor pela dor, à redenção pelo sofrimento. Cristo é um redentor humano, Deus o redentor universal. É o ser infinito, porque é o amor ilimitado. E a natureza tenebrosa, vista de Deus, divinizou-se por encanto.
Guerras, lutas, crimes, catástrofes, desordens, evaporam-se e fundem-se em harmonia mágica e perfeita.
Mas logo adiante, a páginas 90, a natureza, divinizada, reverte e regressa à sua forma demoníaca, de matéria bruta.
«Ser só, sem amigos, sem apertos de mão, sem conhecidos, ser só e livre, que sonho!
Do altruísmo absoluto, do absoluto amor, que é Deus, retrogradou ao individualismo anarquista, ao egoísmo feroz, que é Satanás. Do pólo positivo saltou ao pólo negativo. Entre os dois pólos, entre o bem e o mal, entre Deus e o Diabo, vai oscilar e flutuar a sua alma, ora aproximando-se de um, ora aproximando-se do outro, ora imobilizando-se quase, pelo hausto indutivo das duas correntes antagónicas.
Tal um Cristo, penosa e religiosamente escalando o calvário, e que, a meio da encosta, varado de dor, esvaído o ânimo e evolada a fé, arrojasse a cruz dos ombros, exclamando num ímpeto: «Basta! Se o caminho do céu é um martírio abrupto, uma inferneira íngreme, desisto do céu e volto para trás para o conchego do meu lar, para a ternura de minha mãe, para o afecto dos meus parentes e meus irmãos. Antes risonho e feliz, junto do meu pai humano, que é carpinteiro, a aplainarmos cruzes, do que, morto e crucificado, na glória infinita do meu divino Pai celestial!»
E assim blasfemando, retrocederia na encosta do sofrimento e da amargura, para, já lá no fundo, voltar a subi-la novamente, a cruz nos ombros, com maior fé e maior ânsia.