Os Pobres - Cap. 2: I - O enxurro Pág. 22 / 158

É a habitação do Gebo, das prostitutas, do Gabiru, do Pita.

Escancara-se o portão, caem-lhe os telhados, mas se, em cima, nas mansardas arrombadas dá de chapa o sol, acreditá-la-eis a cismar, a cantar. É efectivamente de pedra e de sonho.

Chove, mas a terra árida não tem água nem plantas.

Em volta a cidade é odiosa, pedras sobre pedras, muros atrás de muros. O céu fica muito alto e só se vê das trapeiras. Há seres lá no fundo que nunca levantaram a cabeça... Andam-se léguas e a cidade não acaba, envolta em fumo cada vez mais negro e riscada de chaminés cada vez mais altas.

Só um simulacro de árvore cresceu naquele saguão infecundo. Sustenta-se de dor. As suas raízes foram minando até ao Hospital, construído em frente da casaria, para sugar a vida dos pobres. Se um raio de lua, escoado pelas nuvens, a toca – eis um fantasma de árvore todo de pó de luar...

Quedo-me sozinho nas noites estiradas, ouvindo o enxurro vivo. Muitas vezes são lágrimas que correm ou emoção que brota com o ruído dum fio de bica cheio de cintilações e rumores. O cair de lágrimas é sempre duma tristeza pacifica... Na noite negra o Hospital entaipa a cidade: árvores, noras humedecidas, montes solitários, parece que os proíbe aos desgraçados: como um velho sumidouro espera, guarda, construído de pedra e num brasido por dentro, todos os que sofrem, santos, pobres, mulheres perdidas e heróis.

O Pita, embrulhado no seu xale-manta, murmura às vezes ao contemplá-lo:

– A misericórdia humana constrói destes castelos, para que os ricos não assistam ao sofrimento dos pobres.

E fê-los de pedra, de granito bem sólido, para que se não ouçam os gritos cá fora.





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