Os Pobres - Cap. 1: Carta-Prefácio Pág. 7 / 158

.. E tudo vago, indistinto, confuso, num rumor longo e subterrâneo. Não se destacam, não se desenham as formas. Olhos, bocas, gestos, relampeando na sombra... Nada mais. A sombra voraz esbate as linhas e os contornos. É o mundo caótico da miséria, que a noite pútrida gerou e a noite soturna há-de engolir... o seu mundo, o mundo dos pobres, meu grande visionário, quase desconhecido e genial.

Homens de gosto coleccionam quadros ou estátuas.

O meu amigo colecciona dor. Não em galerias ou museus, como quem se dedica ao estudo biológico das várias formas de sofrer. Quando uma chaga aterradora o surpreende, não a envasilha num frasco, guarda-a no coração.

Conta-lhe os ais, não os micróbios. Em vez de a analisar, decompondo-a, analisa-a beijando-a. No seu laboratório químico existe apenas um reagente, que dissolve tudo: lágrimas.

O poeta dos Pobres não é um romancista. A alma do evocador fluidicamente se desagrega nas almas de sonho que ele evoca. Dir-se-iam espelhos, brancos, verdes ou azuis, planos, côncavos ou convexos, reflectindo todos eles um único semblante, que julgamos distinto, porque aparece deformado.

Chamei aos Pobres uma confissão religiosa. Não há dúvida. Os seus pobres, meu amigo, são bocas de visões, articulando a alma dum vidente. Falam a sua língua e contam-nos a sua história. Não a história, no minuto e na rua, do homem-sicrano, mas a história, no espaço e no tempo, do homem infinito, que vem de Deus e para Deus caminha.

No drama dos Pobres há dúzias de actores e um só personagem: o dramaturgo. As suas figuras não constituem individualidades reais, caracteres verosímeis, logicamente arquitectados e definidos pelas inúmeras causas de existência, conglobadas em duas ordens genéricas, – a herança e o meio.





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