Os seus ladrões, assassinos e meretrizes, não roubam, não matam, não copulam: sofrem. Sofrer, eis o seu mister. Mouca, Luísa, Gebo, Gabiru, – pseudónimos. O nome real, o nome verdadeiro de todos eles é um só: a Dor.
Inevitável. Desde que o meu amigo rasgou as máscaras enganadoras ao Universo, para lhe descobrir a essência e natureza intima, e desde que a lei do Universo é o predomínio do mais feroz e do mais forte, toda a imensa humanidade, tumultuosa e vária, se resume logicamente em dois homens apenas: o algoz e a vitima, o homem que sofre e o homem que faz sofrer. Os bons são os que padecem. A miséria, mesmo sinistra e delinquente, é já um princípio de virtude. Nenhum dos ladrões, nenhuma das prostitutas do seu poema resvalaram ao vicio ou ao crime por vontade própria, por fatalidade fisiológica. Obrigou-os a fome, calcou-os a injustiça. A sua infâmia e a sua ignominia é a avareza ou a luxúria dos homens opulentos e devassos. Todos os ricos, ainda os caridosos, são perversos, e todos os miseráveis, ainda roubando ou esfaqueando, são criaturas boas, porque são vítimas dos primeiros. Os retratos dos benfeitores do seu hospício (página 105) parecemlhe «uma galeria de afogados, todos solenes, secos, hirtos, de lábios finos e ar de cerimónia». E as alfurjas, cadeias e prostíbulos, onde se amontoam, num horror tenebroso, os vícios alucinados e os crimes exorbitantes, afiguramse-lhe à imaginação misericordiosa como templos de angústias, santuários sagrados de tribulações e de martírios. É um flos-sanctorum da miséria, a dor do enxurro canonizada e sublimada.
Mas se a lei da natureza é iníqua e feroz, visto os maus triunfarem e os bons sucumbirem, donde vem essa lei, quem a gerou, quem a impôs ao universo? Quer a criasse, com o universo, uma vontade alheia, quer ela seja imanente ao universo infinito, é, nos dois casos, uma lei monstruosa, negadora da suprema ideia do espírito do homem, a ideia do bem e da justiça.