Nos olhos reflecte-se-lhe o abismo que descobre, a secura dos outros, o sonho calcado e por terra, lágrimas e enternecido espanto.
– Foste tu! foste tu! Tu riste-te de mim!... – diz, apontado a Mouca.
Os ladrões gargalham e só ela se cala, a Mouca que tem rido sempre de tudo, da vida, da morte e até da própria desgraça.
– Ó Mouca! ó Mouca! olha o poeta! – gritam todos à uma.
– Que é! Deixem-me!...
E cisma.
Altas horas da noite. Saio, erro... A pensar em quê?
Em coisas desligadas, sem nexo: na ambição, no ódio, no exaspero. As ruas seguem monótonas, negras, enlameadas; dum lado e de outro as casas parecem construídas de tinta, e de lama o céu, que se desfaz e goteja. Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um velho... Não o distingo bem: é a sua sombra que eu vejo, cómica e desengonçada e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe notei cabelos brancos. Aquela sombra agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala sozinho, discute... As vezes tropeça, ergue-se e lá parte a pregar por entre a casaria e o ruído, debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.
Agora as ruelas apertam-se e, já reparei, ele pára, volta para trás, há meia hora que gira no mesmo sítio, absorto. A chuva enlameia-lhe os cabelos e os seus braços gesticulam num redemoinho.
Das alfurjas vai saindo um ou outro noctívago, que o olha e passa indiferente, murmurando os seus exasperos ou as suas aflições.
A cidade di-la-íeis farta de tédio, afundando-se em lama. As nuvens baixas e disformes esfarrapam-se, colam-se aos prédios. Os casarões alongam-se pesados e enormes, e onde a onde irrompe um golfão de luz. A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa torre.