Procurar livros:
    Procurar
Procurar livro na nossa biblioteca
 
 
Procurar autor
   
Procura por autor
 
marcador
  • Sem marcador definido
Marcador
 
 
 

Capítulo 15: XIV - O escárnio

Página 92
Nos olhos reflecte-se-lhe o abismo que descobre, a secura dos outros, o sonho calcado e por terra, lágrimas e enternecido espanto.

– Foste tu! foste tu! Tu riste-te de mim!... – diz, apontado a Mouca.

Os ladrões gargalham e só ela se cala, a Mouca que tem rido sempre de tudo, da vida, da morte e até da própria desgraça.

– Ó Mouca! ó Mouca! olha o poeta! – gritam todos à uma.

– Que é! Deixem-me!...

E cisma.

Altas horas da noite. Saio, erro... A pensar em quê?

Em coisas desligadas, sem nexo: na ambição, no ódio, no exaspero. As ruas seguem monótonas, negras, enlameadas; dum lado e de outro as casas parecem construídas de tinta, e de lama o céu, que se desfaz e goteja. Que mundo este!... Na minha frente, reparo, caminha um velho... Não o distingo bem: é a sua sombra que eu vejo, cómica e desengonçada e, ao passar pelo lampião ia jurar que lhe notei cabelos brancos. Aquela sombra agita-se. Mexe os braços, com o chapéu na mão, fala sozinho, discute... As vezes tropeça, ergue-se e lá parte a pregar por entre a casaria e o ruído, debaixo da chuva miúda, lama negra que goteja do céu.

Agora as ruelas apertam-se e, já reparei, ele pára, volta para trás, há meia hora que gira no mesmo sítio, absorto. A chuva enlameia-lhe os cabelos e os seus braços gesticulam num redemoinho.

Das alfurjas vai saindo um ou outro noctívago, que o olha e passa indiferente, murmurando os seus exasperos ou as suas aflições.

A cidade di-la-íeis farta de tédio, afundando-se em lama. As nuvens baixas e disformes esfarrapam-se, colam-se aos prédios. Os casarões alongam-se pesados e enormes, e onde a onde irrompe um golfão de luz. A sombra caminha, toma por ruelas funéreas. Vai sozinha com o seu sonho ou a sua desgraça. Três horas numa torre.

<< Página Anterior

pág. 92 (Capítulo 15)

Página Seguinte >>

Capa do livro Os Pobres
Páginas: 158
Página atual: 92

 
   
 
   
Os capítulos deste livro:
Carta-Prefácio 1
I - O enxurro 18
II - O Gebo 23
III - As mulheres 28
IV - O Gabiru 35
V - História do Gebo 42
VI - Filosofia do Gabiru! 49
VII - Primavera 52
VIII - Memórias de Luísa 59
IX - Filosofia do Gabiru 63
X - História do Gebo 67
XI - Luísa e o morto 73
XII - Filosofia do Gabiru 77
XIII - Essa rapariguinha 81
XIV - O escárnio 87
XV – Fala 94
XVI - O que é a vida? 97
XVII - História do Gebo 109
XVIII - O Gabiru treslê 114
XIX - A Mouca 118
XX - A outra primavera 121
XXI - A Morte 126
XXII - A filosofia do Gabiru 130
XXIII - A Árvore 134
XXIV - O ladrão e a filha 139
XXV - Natal dos pobres 143
XXI - Aí têm os senhores a natureza! 154