O Retrato de Ricardina - Cap. 23: CAPÍTULO XXIII - A RODA DA FORTUNA Pág. 142 / 178

- É verdade que eu voltei a face com um gesto de impaciência - pensava ela - , mas quantos aí há de ilustre sangue que teimam em receber os desagrados com rosto de mártires e pensam elevar-se com abjeções? E, se acontecesse aquele homem odiar-me ou desprezar-me? Pois um pobre que dá uma libra de esmola, e rejeita um lucrativo despacho por salvar a sua dignidade abocanhada, importa-lhe porventura que eu seja rica? Se ele me considerasse bela! Se eu o tivesse impressionado e ofendido com o desdém, quando ele olhava para mim, não é natural que reparasse em me ver constantemente na janela há quinze dias?!

E que pensava Alexandre Pimentel, vendo, se via, a viscondessa na janela? Umas vezes ia pensando nas leis dos Turdetanos escritas em verso, ou na distinção ainda incerta de procônsules e protutores. Outras vezes nos doze livros da Lex Wisigothorum, ou na coleção dos Cânones dos concílios. Alma regurgitada de sabenças tamanhas, apenas surgiria da sua modorra se a viscondessa caísse da janela à rua, ou desse dez-réis a cinco pobres. Aqui está. A indiferença do literato não mareava a incontestável beleza da fidalga. Era Afonso V de Ledo ou S. Martinho de Dume ou qualquer fantasma deste porte e tomo que o divertiam de pôr os olhos humildes no formoso osso dos cem cães.

A liberdade veste de asas a paixão e dá trela à ave daninha até onde ela se libra. A viscondessa perguntou ao Mesquita, condiscípulo do escritor, se lhe descobria a residência de Alexandre.

- Hoje, se vossa Excelência não quer que seja já.

- Quando puder.

Mesquita foi à Biblioteca e disse ao espanejador do pó dos in-fólios:

- Tenho um livro para te mandar.

- Que é?

- Não lhe sei o título. Trata das leis que trouxeram à Lusitânia uns vândalos chamados silingos.





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