Madame Bovary - Cap. 22: XIV Pág. 237 / 382

A carne liberta deixara de pesar, começava outra experiência; parecia-lhe que o seu ser, subindo para Deus, se ia aniquilar naquele amor como um incenso queimado que se dissipa em vapor. Aspergiram os lençóis com água benta; o padre retirou do sagrado cibório a alva hóstia; e foi desfalecendo numa alegria celeste que ela avançou os lábios para aceitar o corpo do Salvador que lhe ofereciam. As cortinas da alcova flutuavam suavemente em torno dela, como nuvens, e os reflexos dos dois círios acesos em cima da cómoda pareceram-lhe glórias deslumbrantes. Então deixou cair a cabeça, crendo ouvir nos espaços o canto das harpas seráficas e avistar num céu azul, sobre o trono de ouro, no meio dos santos empunhando palmas verdes, Deus o Pai irradiando majestade e, com um gesto, fazendo descer à Terra anjos com asas de fogo para a transportarem nos braços.

Esta visão esplêndida perdurou-lhe na memória como a coisa mais bela que era possível sonhar; de modo que agora ela se esforçava por voltar a ter a mesma sensação, que entretanto sentia, mas de um modo menos intenso, embora com a mesma profunda suavidade. A sua alma, extenuada pelo orgulho, repousava enfim na humildade cristã; e, saboreando o prazer de ser débil, Emma contemplava em si mesma a destruição da própria vontade, que devia dar amplo acolhimento às inundações da graça. Existiam pois, no lugar da ventura, felicidades maiores, um outro amor acima de todos os amores, sem interrnitência nem fim, que crescia eternamente! Entrevia ela, por entre as ilusões da sua esperança, um estado de pureza flutuando acima da Terra, confundindo-se com o Céu, a que aspirava chegar. Quis tornar-se uma santa. Comprou rosários, passou a usar amuletos; desejava ter no quarto, à cabeceira da cama, um relicário engastado de esmeraldas, para o beijar todas as noites.





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