Madame Bovary - Cap. 23: XV Pág. 248 / 382

Avançou então uma rapariga atirando uma bolsa a um escudeiro de verde. Depois ficou sozinha e ouviu-se uma flauta imitando o murmúrio duma fonte ou um chilrear de pássaros. Lúcia atacou corajosamente a sua cavatina em sol maior; queixava-se de amor e pedia asas. Emma, do mesmo modo, quisera fugir da vida arrebatada num abraço. Repentinamente apareceu Edgar Lagardy.

Tinha uma palidez esplêndida, daquelas que emprestam um quê da majestade dos mármores às ardentes raças do Sul. O seu tronco vigoroso vestia um gibão de cor escura; na coxa esquerda batia-lhe um punhalzinho cinzento, e relanceava olhares lânguidos, descobrindo os seus dentes alvos. Dizia-se que uma princesa polaca, ouvindo-o uma noite cantar na praia de Biarritz, onde consertava embarcações, se apaixonara por ele. Arruinara-se por sua causa. Depois ele abandonara-a por outras mulheres e aquela proeza sentimental não deixava de contribuir para a sua reputação artística. O comediante diplomata tinha mesmo o cuidado de incluir sempre nos cartazes uma frase poética sobre o fascínio da sua pessoa e a sensibilidade da sua alma. Uma bela voz, um imperturbável aprumo, mais jeito do que inteligência e mais ênfase do que lirismo, acabavam de realçar aquele admirável tipo de charlatão, que incluía um pouco de cabeleireiro e de toureiro.

Logo na primeira cena causou entusiasmo. Apertava Lúcia nos braços, deixava-a, voltava de novo, parecia desesperado: tinha acessos de ira, depois desabafos elegíacos duma doçura infinita, e as notas escapavam-se-lhe da garganta despida, cheias de soluços e de beijos. Emma debruçava-se para o ver, esgravatando com as unhas o veludo do camarote. Enchia o coração daqueles lamentos melodiosos que se arrastavam como acompanhamento dos contrabaixos, como gritos de náufragos no tumulto duma tempestade.





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